"...do norte que precisa essas crianças
pra não ver graça
em seu vilão
2000 anos passou
mas se ainda
voltasse
Jesus morria em nossa mão
só que ao invés de
cruz põe, então
de menor e moletom
num chão de terra sem
culpa nem chance
pra redenção
quantos foi louco de
são
quantos ainda vão
cê é louco, não
cabe a mim
fazer não ser em vão."
Neto (Síntese), versos de "Lá Maior"
2016 parece que está insistindo em não terminar. Ano longo, de
muita angústia. O cenário, num mapeamento fino, muda o tempo todo.
Golpes dentro de golpes. Nossas vidas arrastadas e arrasadas nas
correntes da História. E o ano, que muitos pensamos poder encerrar
2015, não dá trégua. E o que é um ano? Um giro astronômico, da
terra ao redor do sol, que tb segue seu rumo, indo e girando pelo
espaço. E nossas vidas dentro de um ano?
O Síntese, que começou como uma dupla, hoje é o nome do projeto
do rapper Neto.
Voz do interior de SP, vindo com umas palavras cheias de verdades e
tapas na cara.
Quando escutei seu primeiro disco, "Sem Cortesia", soou-me
como um radicalismo do tom profético que já havia me marcado no
primeiro disco do Criolo, no "Ainda Há Tempo". É um flow
incendiário, fervoroso, como a fala de um fiel. Bate fundo no
aspecto religioso do RAP.
Neste primeiro disco ainda me soava meio esquisito a mistura de
esquizofrenia com as narrativas bíblicas. Um quase moralismo, uma
ideia meio perigosa do diabo e do mal. Mas, felizmente, o Neto foi
muito bem aceito na cena do RAP de São Paulo. Fez uns contatos com
os músicos do Metá Metá, que possuem um trabalho religioso/musical
muito qualificado ligado ao candomblé. E o Neto participou,
brilhando, tb do disco "Convoque Seu Buda, do Criolo", na
faixa "Plano de Vôo".
E quando eu já não esperava que houvesse algum lançamento musical
capaz de me resgatar do caos depressivo que anda nosso cotidiano, o
Neto vem com palavras de fé. Seu último disco, "Trilha Para o
Desencanto da Ilusão, Vol. 1: AMEM", veio redondo. Chegou em um
momento necessário pra muitas almas, e com uma maturidade de
fundamento e acabamento que certamente fazem desse álbum um clássico
da canção brasileira. Um album lindo, emocionante. Inspirador.
Não dá pra resumir o monte de ideia que o Neto alinha em seus
versos.
Recomendo muito que se escute, com atenção, lendo todas as letras
no liryc/vídeos!
Gostaria de tecer elogios e observações sobre cada um dos sons, e
dos vídeos. Não tenho tempo e vejo que nem precisa muito disso. Vou
colocar uns vídeos dele aqui se vc escutar os sons com calma vale
mais que ficar lendo o que eu poderia escrever nesse momento, de
grandes desilusões.
Este blog tem buscado acompanhar de perto as movimentações políticas e culturais por meio de escutas de canções. Em muitos casos a linguagem do RAP tem comparecido com relevo em nossas escutas. Mas devo confessar que a origem cultural deste escrivinhador é a das modas de viola, não a das agulhas e toca discos.
Conheci o nome Florestan Fernandes quando eu era aluno de Iniciação Científica e estudava literatura de cordel. Patativa do Assaré eu já conhecia de criança, com o clássico Vaca Estrela, Boi Fubá. Depois fui conhecer melhor a obra, ler os cordéis e saber sobre sua vida.
Estes dois nomes vieram à baila por conta de mais um índice de que vivemos um estado de exceção, onde a democracia e o direito de livre pensamento e organização das pessoas vem ruindo vertiginosamente. O Lirinha vc conhece? Foi um nome que tb me chegou por volta da época em que eu fazia IC. Ele era o vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado, importante grupo representante da cena manguebeat. Bem, assintam o vídeo com ele falando:
Ontem foi um dia muito importante dentro das mobilizações de resistência às atrocidades propostas pelo atual governo, ilegítimo e golpista, na cidade de Londrina. Foi nesta primeira sexta feira de novembro, dia 4 do 11 de 2016, que jovens estudantes secundaristas, que antes já haviam ocupado seus colégios, ocuparam a câmara de vereadores, e que jovens estudantes universitários de vários cursos ocuparam a reitoria da Universidade Estadual de Londrina. Enquanto isso a assembleia dos professores, na mesma tarde e instituição, decidia pelo fim da greve e pelo apoio simbólico ao movimento de ocupações dos estudantes, bem como pelo repúdio às ações autoritárias da atual reitora da universidade em relação à ocupação da Rádio UEL FM e a reintegração de posse do colégio de Aplicação.
A ocupação da Rádio de nossa instituição nos remete instantaneamente à um episódio emblemático da história do Brasil, que foram as transmissões da Rádio Libertadora, e por conseguinte, à figura de Carlos Marighella. Ontem fez 47 anos que Carlos foi assassinado.
Na quarta feira, dia 2, pouco depois da ocupação da Rádio UEL, foi realizada a performance "Procura-se um Corpo" na praça do CECA (centro da universidade que abriga os cursos ocupados). Era dia de finados. No dia seguinte foi realizada uma assembleia de centro, sob os corpos simbólicos de mortos (não encontrados) durante a ditadura.
E se por um acaso vc ainda não assistiu ao documentário sobre nosso maior ícone guerrilheiro, segue o link: Marighella. É importante lembrar que o som dos Racionais foi composto para o filme.
Ainda nesse clima de dia dos mortos, hoje é dia de lembrar de mais motivos para resistir lutando. Faz um ano que ocorreu o desastre em Mariana. O maior desastre ambiental de nosso país, matando o Rio Doce. Uma tragédia que mostra e tenciona o quanto conseguimos ampliar nossa compreensão sobre o quais são os motivos que nos mobilizam e nos agregam em luta.
É claro que as ocupações não possuem relação direta com o crime ambiental cometido pela Samarco/Vale. Mas uma vez que as ocupações também não obedecem à lógica sindical, de pautas trabalhistas e objetivas, é de fundamental importância percebermos como todo este movimento de resistência tem relação com o enfrentamento ao golpe em sua existência mais horizontal, que é a mentalidade fascista/religiosa que se expande.
Lembrar das mortes de Mariana, fazer parte do coro dos que clamam por justiça, expandir a consciência sobre este incidente, o que passa por ampliar nossa compreensão dos movimentos políticos e nossa readequação de hábitos, tem muita relação com as ocupações. O mesmo vale para a memória de Marighella e demais mortos e desaparecidos durante o regime militar.
O rapper Sabotage é o maior símbolo do RAP nacional. Uma espécie de mártir. E depois de mais de uma década temos mais um disco clássico do maestro do Canão. Nesse momento de várias retomadas do hip-hop nacional - RZO voltou pesado!!!; Criolo relançando o Ainda Há Tempo; Racionais, Eduardo... vários - a voz de Sabotage chega meio que impondo ordem. Quase como a voz inconteste, vinda com a sapiência do além.
O disco não viria com uma produção qualquer, é claro. E coube ao mestre Daniel Ganjaman assinar mais um disco clássico da música brasileira. Com um domínio apurado das texturas, cortes, tempos e planos que se intercambiam.
Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar
Pode estar aqui do lado
Bem mais perto que pensamos
A folha da juventude
É o nome certo desse amor
Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Quantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê
Flor, flor e fruto
Coração de estudante
Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo
Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes, planta e sentimento
Folhas, coração
Juventude e fé
O movimento de ocupações se espalha pelo país. Mas esse play de hoje é especial aos meus queridos alunosamigos que ocuparam o prédio do curso de música, no qual me formei e no qual trabalho. Sou um eterno aprendedor nestes corredores, nestas salas... enfim. Parabéns!
Estudantes do curso de Música da UEL ocupam mais um prédio do CECA, e somam-se aos já ocupados estudantes do curso de Artes Cênicas. Na foto, os dois cursos em frente do prédio de Música.
Chico Buarque é, pro Brasil, o mestre cancionista vivo mais importante nesse momento. No dia do golpe parlamentar que retirou Dilma da presidência, Chico Buarque foi citado tanto por quem votava à favor como por quem votava contra. Dentre suas várias canções que se tornaram hinos contra a ditadura, Cálice ocupa um posto central.
Colégio Vicente Rijo. O maior de Londrina e segundo maior do estado. Foto Gustavo Carneiro.
No dia 6 de outubro eu avisava os amigos e alunos que no Paraná já estávamos com 20 escolas ocupadas. No dia 7, jovens secundaristas ocuparam o primeiro colégio em Londrina. Foi o Albino Feijó Sanches, na ZS, já desocupado por mandato judicial. Porém o número de escolas ocupadas já passa de trinta, só em Londrina. No estado do Paraná, que está com o movimento de ocupações mais elevado do país, a conta passa de 850 escolas. Número bem maior que as 198 escolas ocupadas no estado de São Paulo no final do ano passado contra as medidas de Geraldo Alckmin. Hoje, dia 24 de outubro, estamos iniciando a terceira semana de ocupações e a segunda semana de greve dos professores. Mas as pautas, infelizmente, ainda não são as mesmas. Os estudantes estão mobilizados contra as MP 746 e PEC 241 (que afeta também a saúde e a assistência social por 20 anos) e gritam ao fundo destes enfrentamentos o brado Fora Temer! Os professores, nem todos é claro, não gritam com convicção nem o Fora Richa! Eles murmuram mais assim: Richa Caloteiro!
Esse é o contexto de escuta, ok!?
Dá o play:
Enquanto pedalava pra ir dar aula nos colégios ocupados sempre me vinha esse refrão:
"O-cu-par e resistir, ocupar e resistir.
O-cu-par e resistir, ocupar e resistir."
Se trata da canção dos estudantes Lucas Penteado (19) e Fabrício Ramos (17) com os músicos produtores Rodolfo Krieger e Duda Machado.
Ocupar e Resistir
Letra: Koka e Fabricio Ramos
Salve família Secundarista na voz Vai segurando De São Paulo pro mundo A rua é nossa Você tem sede do quê? Eu quero outra escola Não mexe com quem tá quieto
Acordei olhei pro lado Vi manifestação E do outro lado vi Uma pá de ocupação Enquanto uns gritavam felizes É campeão Outros apanhavam e lutavam Pela educação Política desinteressante Causada pela corrupção Estigma digna indignação Qual seria o tema do Debate em questão Gol da Alemanha Ou senador no mensalão Suor cansaço Causado pela exaustão Fome e morte Causada pela ambição Enquanto nas ruas O que se vê é opressão Auto opressão E na mídia Alienação E quem será o culpado em questão Aquele que é eleito Ou aquele que Vota na eleição
Direita tropa de choque Em cima o governo fascista Esquerda argumentação Embaixo secundarista (2x)
Ocupar e resistir (8x) Quantos lutaram Gritaram faleceram Mais de mil? Aqui vai virar o Chile Ou o Chile virou o Brasil?
Memorável Luta consciente E coincidentemente incrível E é difícil e dói saber E descobrir Que a única coisa Que cresce mais que a inflação É o genocídio Só pra deixar bem claro, irmão Não tem arrego Você fecha a minha escola E eu tiro o seu sossego.
Salve família A rua é nossa
Ocupar e resistir (25x)
Os secundaristas mobilizados lutam pela possibilidade de sonharem.
No caso, agora, isso se mostra no enfrentamento com as MP e PEC mencionadas.
Mas eles não são ingênuos e sabem que a luta vai além.
Estou torcendo para os professores (re)aprenderem cada vez mais com este processo
com estudantes que nos mostram claramente
a força que temos quando acreditamos nos sonhos e na poesia.
Isso o hip-hop ensina a todo momento,
e não é por acaso que a forma de expressão utilizada pelos secundaristas é um RAP.
Vamos começar pela constatação de que vivemos uma guerra, ok!?
São índices de guerra mesmo, com mortes diárias.
No RAP é comum, por exemplo, a metáfora da geografia local - periferia - com a Faixa de Gaza.
Se você ainda não se convenceu disso eu sugiro que vc escute a fala do Eduardo, um MC muito importante dentro do hip-hop. Vê o que ele fala aqui: Suburbano Entrevista.
E nesse ritmo de um lançamento áudio-visual por mês, justamente
ontem, no fatídico dia 31 de agosto de 2016, Emicida lançou sua
homenagem às Mães de Maio.
Certo, ocorre uma guerra em nosso país, mas é difícil de perceber que ela existe pois não é uma guerra comum, daquele tipo que se aprende na história. Essa guerra daqui é maquiada, camuflada, e as bandeiras muitas vezes se confundem.
É importante dizer isso pois esse é o contexto do novo clipe do Emicida: um cenário de guerra camuflada.
Existe um mote dentro do hip-hop que é "se a história é nossa, deixa que nóis escreve...". Emicida vem trabalhando muito bem nesse sentido, e quase todo clipe que ele lance vem acompanhado de um mini documentário, de modo que o público sempre pode se aprofundar de cara na escuta e compreender melhor várias questões. Foi assim com o clipe de Boas Esperança, que saiu já acompanhado de um mini documentário contando sobre a construção do enredo e as vivências na ocupação Mauá. Como vocês viram, no clipe de Chapa, o vídeo traz a questão das consequências dessa guerra real, cujo alvo é a pele negra, no relato da Mães de Maio. Emicida lançou no mesmo dia, pelo portal Jornalismo Periférico, uma entrevista sobre o lançamento do clipe. Assistam aqui: Chapa pode ser qualquer um de nós
Chapa é uma canção do último disco do rapper paulista Emicida. O álbum é um projeto que envolveu uma viagem para três países da África e problematiza a questão da escravidão em nosso país. O primeiro vídeo que lançado como divulgação do álbum foi Mufete, uma canção sobre as periferias africanas. O segundo foi o bombástico Boa Esperança, onde o MC apresenta uma rebelião de empregadas domésticas. O terceiro foi a doce Passarinhos, onde o clipe sugere um banditismo literário, em que jovens roubam livros de sebos. O quinto foi o clipe de Mãe, um novo diálogo cancional entre Emicida e dona Jacira (o primeiro foi na lapidar Crisântemo). O sexto foi o clipe de Madagascar, onde entramos no sonho de um empacotador de mercado. E nesse ritmo de um lançamento áudio-visual por mês (!!!), justamente ontem, no fatídico dia 31 de agosto de 2016, Emicida lançou sua homenagem às Mães de Maio.
Pra mim o recado a mensagem bateu de cara assim, como uma sincronicidade da rede, se cuida, Chapa.
Escutar
“Benedita” é mergulhar na densidade da história de uma
transexual por meio dos vários aspectos musicais interligados e
muito bem pontuados. A canção foi composta por Celso Sim e Pepê
Mata Machado para a intérprete Elza Soares e faz parte do álbum “A
Mulher do Fim do Mundo”, lançado em 2015 pela cantora. O clima da
música e, consequentemente, da história de Benedita é estabelecido
pelo arranjo que conta com guitarras distorcidas e metais.
Logo
no início, conhecemos Benedito e sua força de vida: “esse nêgo
que quebra o quebranto”, “filho certo de tudo que é santo”.
Também, percebemos os obstáculos que precisa enfrentar: “Benedito
é fera
ferida”,
“traz na carne uma bala perdida”. Nessa parte da letra, guitarra
e bateria alternam riffs
melódicos e ostinatos
percussivos, confirmando a persistência de Benedito. Aos poucos, as
células repetitivas parecem querer desmanchar, porém nunca
completamente.
Então,
uma pausa brevíssima. Agora a música soa mais fluida, possui mais
gingado e os metais surgem com melodias que parecem flutuar sobre a
cama criada pelos demais instrumentos. Somos apresentados à
Benedita: malemolente e malandra, mas corajosa e guerreira – “ela
leva o cartucho na teta”, “ela abre a navalha na boca”. A
partir da apresentação completa de Benedito/Benedita, o arranjo se
densifica, como se caminhasse para seu clímax. A letra nos revela a
violência da polícia, uma milícia, e tensiona o momento do ataque:
ela se prepara. Nesse ponto, é feito um trocadilho interessante com
as palavras crack
e craque,
pois Benedita é craque – lutadora, viva, vencedora – e convive
com o crack – drogas, destruição, miséria.
Em
um terceiro segmento, pode-se notar mais uma mudança de clima, dessa
vez proposta pela melodia das vozes. Todas as dualidades de
Benedito/Benedita são expostas: é homicida, suicida, aparecida,
bendita, maldita, senhora – apavora! Os adjetivos empregados fazem,
também, alusão à Nossa Senhora Aparecida, ícone religioso
tipicamente brasileiro.
Nesse
momento, outra intertextualidade marcante na canção é ressaltada:
Benedita molda-se à imagem e semelhança de Geni, prostituta
protagonista da música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque.
Benedita e Geni sofrem o mesmo descaso, estão à margem da
sociedade, sempre julgadas e sem direito de resposta. Ainda, ambas
representam a dualidade mais básica do homem em um mundo regido pelo
jogo de interesses, o ser mau ou bom: “maldita
Geni”, “bendita
Geni”. A referência à personagem, presente na música toda e em
seu contexto simbólico, fica estancada no verso “crack agora, não
demora, joga
a pedra,
nessa hora”, que remete imediatamente ao bordão “joga pedra na
Geni” da canção de Chico Buarque.
Finalmente,
comprovando mais uma vez sua resistência, ela “vem armada, não
rendida, faz do beco sacristia”. Um instante caótico se instaura
na música e, quando imaginamos ser o fim da canção, uma última
surpresa: a volta do início, que adquire um novo significado por
conhecermos a história de Benedita agora. Ainda, outro aspecto
importante para a construção da música é a contraposição e a
transmutação das vozes de Elza Soares e Celso Sim.
De
forma sintetizada, “Benedita” é uma excelente opção para
tratarmos das questões de gênero, cada vez mais presentes em nossa
sociedade. Cruamente e sem lirismos, pode-se refletir sobre os
obstáculos enfrentados pelas pessoas que decidem assumir essa
transformação em suas vidas. Importantes valores como liberdade,
respeito e diversidade emanam da composição, acrescidos, ainda, das
temáticas da violência, da miséria e das desigualdades sociais e
econômicas.
***
“Benedita”
faz parte do conjunto de onze faixas inéditas que compõem o álbum
“A Mulher do Fim do Mundo” de forma instigante e inspiradora. O
CD é um passeio pelos círculos do inferno de hoje e conta com as
concepções de diversos músicos extremamente ativos no cenário
musical paulistano atual: Guilherme Kastrup, Celso Sim, Romulo Froés,
Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Thiago França, Marcelo Cabral e os
músicos da banda Bexiga 70 – Cuca Ferreira, Daniel Gralha, Daniel
Nogueira e Douglas Antunes. O resultado apresentado no álbum é
fruto da idealização de criações artísticas, desses músicos,
destinadas a Elza Soares e sua irreverência.
Em
convergência com as considerações de Kiko Dinucci em seu texto
“Caminhos da polifonia contemporânea”, vale salientar que, assim
como a “polifonia cacofônica de São Paulo”, o álbum “A
Mulher do Fim do Mundo” resgata os sons das ruas – a paisagem
sonora dos grandes centros urbanos – de uma forma esteticamente
enérgica e permite encontrar a beleza que floresce dos aparentes
defeitos.
“Coração
do Mar”, de José Miguel Wisnik, com letra de Oswald de Andrade, é
à capela: nas sombras, a voz de Elza Soares ilumina o início dessa
jornada náutica. Em sequência, “Mulher do Fim do Mundo”, de
Romulo Fróes e Alice Coutinho, traz a cantora como narradora do
apocalipse: a desintegração ocorre durante o carnaval – a pele
preta, a voz e o resto espatifados na avenida. Elza resiste, pede que
a deixem “cantar até o fim”, e as notas longas da melodia
traduzem perfeitamente o cansaço e a persistência.
“Maria
da Vila Matilde”, de Douglas Germano, trata da violência
doméstica: “cadê meu celular, eu vou ligar pro 180”, “cê vai
se arrepender de levantar a mão pra mim”. Distorções sonoras se
misturam à melodia e samba, rock e rap se integram. Também, em "Luz
Vermelha", de Kiko Dinucci e Clima, rap e punk rock são
sobrepostos e o apocalipse é recortado em cenas de periferia,
tiroteio e ruas esvaziadas. A favela torna-se o cenário do fim do
mundo e do Brasil e, ao mesmo tempo, o lugar de onde pode ser
reconstruído. A reação perante a destruição é a chance de um
renascer das cinzas.
A
canção “Pra Fuder”, de Kiko Dinucci, é um samba rápido em que
o tesão é cantado sem frescura e alardeado pelo naipe de metais. Em
“Firmeza?!”, Rodrigo Campos cria mantras a partir de gírias
talvez pertencentes aos arredores de seu cotidiano. Angústia e
fraternidade pincelam a música, gravada em duo com o autor.
O
tango “Dança”, de Cacá Machado e Romulo Fróes, se situa depois
do fim: a narradora está morta; quase pó, insiste em dançar. Elza
não desiste. O oriente chega por meio da sonoridade e da letra de “O
Canal”, de Rodrigo Campos, e seu arranjo segue no ritmo da
caminhada feita em busca de algo, do renascer.
Em
“Solto”, de Marcelo Cabral e Clima, como o título e as notas
soltas indicam, a travessia é solitária, sem nada mais. Não há
guitarras ou distorções, as quais voltam no início de “Comigo”,
de Romulo Fróes e Alberto Tassinari. O crescendo ruidoso estanca de
repente e Elza ressurge à capela, em tom de oração, de lamento
sertanejo: “levo minha mãe comigo, pois deu-me seu próprio ser”.
Então, um longo silêncio do fim de tudo. Porém, sua voz permanece
ao fundo... Elza insiste!
***
Como
falar de “A Mulher do Fim do Mundo” e não pensar na trajetória
de vida de Elza Soares? Mulher, negra, nascida em uma comunidade
pobre do Rio de Janeiro: Elza é a representação da minoria. Para
além de sua voz rouca única, a cantora é conhecida por quebrar
paradigmas, pois sabe o que é discriminação. Elza Soares tornou-se
um ícone para o Brasil.
Sua
voz misturou muito jazz
e samba desde seus 13 anos e rendeu gravações com grandes nomes da
música brasileira, como Roberto Ribeiro, Wilson das Neves e Milton
Nascimento. Segundo Ronaldo Bôscoli, é a “bossa negra”. Na
década de 80, estreou no cenário pop: sempre contemporânea, feliz
e coerente na escolha de repertórios. Elza passeia tranquila em
qualquer território com seu timbre especial e o balanço que faz sua
voz soar como um instrumento. Uma artista que vive seu tempo e não
envelhece. Uma mulher que sacode a poeira, levanta e dá a volta por
cima.
Referências
VIANNA,
Luiz Fernando. Elza Soares renasce das cinzas com seu já histórico
novo disco. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1689464-elza-soares-renasce-das-cinzas-com-seu-ja-historico-novo-disco.shtml>.
Acesso em: 23 fev. 2016.
Ontem saiu o novo disco do Metá Metá: MM3.
É mais um registro ao vivo, pois essa é desde o início uma das propostas do grupo.
São os 3 (Kiko, Thiago e Juçara) mais o Marcelo Cabral (baixo) e o Sérgio Machado (bateria).
Num exercício de desprendimento (na aceitação dos erros) em 3 dias de estúdio.
O resultado, como era esperado, ficou visceral.
Mas mais do que isso, é um disco de luta, de resistência cultural.
Ano passado conversei com eles aqui em Londrina. Na entrevista ficou nítido como o posicionamento religioso deles
é também um posicionamento político. O Thiago França disse:
"quando você não esconde o que você é, isso já é um ato político".
Pois bem, acontece que o golpe que foi dado na democracia brasileira
utilizando-se da maquinaria midiática tradicionalmente manipuladora
foi forjado por gente que não tolera a diversidade cultural e religiosa.
Neste contexto o disco do Metá Metá é uma afronta direta aos valores fascistas
que crescem à todo vapor em nosso tempo, em volta de nós.
São nove canções novas. E diferente dos outros dois discos
onde as canções já existiam e foram arranjadas pelo trio
agora elas foram compostas desde o início entre eles.
O disco abre com Três Amigos, com participação de Rodrigo Campos na composição
mais a Juçara e o Sérgio. O texto é aberto e agressivo
como uma carta de apresentação da banda, e do disco.
Uma canção pra por "os bico em choque".
Quase um aviso do tipo "quem não entende que saia assustado... ou fica suave".
Angoulême, a segunda faixa, vem no mesmo encalço, com texto aberto e agressivo
sonoridade agitada e surpreendente. A terceira canção do disco é
A Imagem do Amor, outra pedrada. A anti-balada do disco
que grita "a imagem do amor não é pra qualquer um"!
Faz lembrar a lenda de Iansã, uma mulher em forma de búfalo
mas que poucos podem ter o privilégio de vê-la em forma de mulher
como uma das ilustrações que acompanham o disco.
Sempre comparo Kiko Dinucci à Dorival Caymmi
tanto por seu talento como artista plástico como pelo
uso da mitologia do candomblé, gerando
canções mágicas (mágicas conforme Edgar Morin).
Mano Leguá, a quarta faixa do disco, nos conecta com Exú,
Orixá mal compreendido e chamados pelos perseguidores
de Diabo. Kiko inclusive já produziu um documentário
Pra finalizar a escuta do álbum MM3 temos Oba Koso, um canto pra Xangô
o rei da justiça. Uma faixa de 9 minutos com texto curto,
como outras canções do Metá Metá, praticamente um mantra.
Um mantra que prepara a alma pra guerra.
Está mais do que evidente que o golpe que efetuaram contra a democracia no Brasil possui uma natureza extremamente machista. Do preconceito linguístico (que nunca aceitou a expressão presidenta) aos comentários difamatórios (que chegou ao absurdo de produzir adesivos para carros, sugerindo o estupro de Dilma pela bomba de combustível), estava mais que evidente que o seria um golpe contra todas as mulheres. Não é surpresa a ausência de mulheres e negros no quadro deste governo ilegítimo.
Mas ainda assim a vida vem e nos choca com mais absurdos. Ontem Alexandre Frota esteve com o novo ministro da Educação, APRESENTANDO PROPOSTAS para o novo governo! Você pode dizer que as propostas eram absurdas mesmo, e com certeza foram engavetadas. Mas o absurdo é ele ser recebido. Se qualquer um de nós, trabalhadores sérios da educação, quiséssemos este encontro será que teríamos? É claro que não é simples assim. Não sejamos ingênuos, como alguém como Alexandre Frota, que já confessou em uma entrevista (e confessou com orgulho) ter estuprado uma mãe de santo, como alguém assim consegue um encontro desses? Alexandre Frota é um personagem tão execrável que qualquer um que realmente se preocupa com a Educação em nosso país deve reconhecer o completo absurdo deste fato.
E como se não bastasse acordo nesta quinta feira de Corpus Christi e vejo a notícia sobre a moça que foi estuprada por trinta homens, que filmaram e compartilharam o filme na rede. Me faltam palavras para este absurdo. Gostaria de compartilhar a leitura do texto TRINTA HOMENS, de Luara Colpa. Leiam.
Como busco acolho e compreensão nas canções escutar o disco da Elza Soares foi o que me restou.
Maria da Vila Matilde, composição de Douglas Germano, é a terceira canção do disco da Elza. O caso da moça que foi violentada por trinta homens é ainda mais estarrecedor quando percebemos que ele é apenas um dos milhares casos de agressões que o machismo impinge contra as mulheres diariamente, em seus muitos níveis, dos mais estarrecedores aos mais sutis. Como homem em processo de (eterna) reeducação, me sinto com uma profunda vergonha das minhas heranças machistas. Cantar junto com a Elza Soares ajuda-me muito nesse processo, lembra-me da importância da continuidade no avanço da desconstrução machista em nosso mundo, e no bizarro caso ocorrido, reforça-me a cede de justiça contra TODOS os CANALHAS que abusaram da moça.
Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é brava, imagine a da Vila Matilde)
Douglas Germano
Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero Vou entregar teu nome E explicar meu endereço Aqui você não entra mais Eu digo que não te conheço E jogo água fervendo Se você se aventurar
Eu corro solto o cachorro E, apontando pra você Eu grito: péguix guix guix guix Eu quero ver Você pular, você correr Na frente dos vizinhos Cê vai se arrepender de levantar A mão pra mim
E quando o samango chegar Eu mostro o roxo no meu braço Entrego teu baralho Teu bloco de pule Teu dado chumbado Ponho água no bule Passo e ofereço um cafezim Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim
E quando tua mãe ligar Eu capricho no esculacho Digo que é mimado Que é cheio de dengo Mal acostumado Tem nada no quengo Deita, vira e dorme rapidim Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim.
Semana passada, dia 19/05/2016, Fioti lançou o segundo clipe de seu álbum de estréia, o EP Gente Bonita. Ele, que é o irmão que largou o emprego no MC'Donalds e investiu seu acerto de contas na primeira mixtaipe de Emicida, fundando assim a poderosa Laboratório Fantasma, já acenava que chegaria o momento de lançar seu próprio trabalho. Mas não se trata de um disco de RAP e sim de um disco de MPB.
Seu novo lançamento é a releitura de um RAP de seu irmão em homenagem ao antropólogo Darcy Ribeiro (importante, entre outras coisas, por estudos de revalorização da importância dos índios na formação nacional). A canção original foi lançada em 12 de março de 2014. No trabalho matriz, parceria de Emicida com Rael, os rappers resgatam a memória do importante intelectual brasileiro, ainda pouco conhecido entre o público de rap nacional (déficit decorrente da distância entre o conhecimento acadêmico e as população das periferias). Dá um confere na original clicando aqui.
Mais de dois anos depois e a consciência que este trabalho busca despertar - só pra lembrar, a consciência é o 5º elemento do hip-hop - é ainda mais urgente do que antes. Se tal consciência estivesse ativa nunca teríamos sofrido o golpe que arrancou a presidenta eleita democraticamente com o absurdo argumento de combate à corrupção. Mano Brown disse que viu "a periferia virar as costas pra Dilma", e revelou-se todo fracasso do hip-hop.
Eis que neste novo lançamento temos a voz de Caetano Veloso lendo Darcy Ribeiro assumindo-se, de maneira bela e emocionante, um grande fracassado.
"Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças
brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei
fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil
desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas
vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"
A leitura de Caetano Veloso, inclusive, me lembra muito apropriadamente as inflexões entoativas de sua canção/RAP, O Herói, em que o compositor tropicalista elegantemente discorda do pai do Chico Buarque (Sérgio Buarque de Holanda) e seu homem cordial, apresentando uma espécie de traficante do morro como sendo o herói que veio para afirmar a democracia racial.
Assistam ao lindo clipe da nova versão antes de prosseguirmos.
Obrigado, Darcy! (O Brasil que vai além)
Emicida e Rael
Calo nas mãos, bola nos pés Banzo ou não, diz quem tu és Arranha-céus ou igarapés Força de bateria nota 10 Ao olho alheio, trem sem freio, viu É um coração cheio, um estômago vazio É a bunda da mulata ou é um moleque de fuzil Paixões e contradições mil Sou do Cristo do Rio, riso efêmero Pô, qual tua cor? Valor? Qual teu gênero? Se descer sem sambar, eles tremerão Com roteiro de inspirar James Cameron Terra de Vera Cruz, luz, berço da vida Os vilão que é do bem, dos heróis genocidas Sonho de paz, outros Carnavais Sou um povo que tem como seu maior bem Gritar gol
Do Oiapoque ao Chui é isso que eu sou Mistura de Tupi com sangue de nagô Recantos de Zumbi batuque de tambor Brasil é isso aí! em todo canto, por onde for
E o que resta pra nós, forca ou amor? Força do tambor de pele, de chumbo Seja como for, livre ou no jumbo Raiz fica no riso dos pobres da cidade mais rica Eu vou pintar o rosto e a rua, igual criança Pura catar a única esperança A alegria na fita, o impasse Batuque na marmita, apatia na face Vem ver onde o samba nasce
Ladeira, entender o segredo da capoeira Na luta e na dança, luta a cada round Nocautes e nocautes nossos Que a TV não aplaude Somos reis undergroud, matéria prima Macunaíma, no peito da América Latina Hi-tech de terreiro O sonho de Darcy Ribeiro Dorme em cada brasileiro
Como o título deste post sugere, minha observação central vai para o processo de releitura ocorrido, onde o elemento musical flow é transformado em melodia. Flow é o principal aspecto da musicalidade de um MC. Flow é a música das palavras. Uma forma mais específica de melopéia. Uma mistura de ritmo, rimas, vocalidade e proto-melodias. MC usa mais os sons da boca, o que enfatiza mais as consoantes, que são os ataques dos sons. Consoantes são pequenos "ruídos" que articulam os timbres das vogais. Um cantor, em contrapartida, dá atenção especial à garganta, que sustentará as vogais entoando melodias (sons de altura definida).
Essa é a principal mudança que Fioti faz na composição de seu mano. A obra de 2014 é mais áspera. Mais ruidosa e ritmada. Mais agressiva. Esta nova versão é mais suave não só por conta da instrumentação, mas sobretudo à transformação do RAP original em uma canção mais doce (apesar da parte falada do final), com uma clara melodia de perfis descendentes que nunca estoura. Nesse processo algumas belezas e forças se perdem e outras se ganham.
O clipe, que é parte integrante desta versão (inclusive a fala do Caetano só tem no clipe) é composto também por uma sequência expressiva de imagens. O trabalho se alinha à proposta da Lab_Fantasma de valorização da cultura afrodescendente. São imagens de negros (e negras) fortes. Corpos bonitos. Mas existe algo diferente entre os exemplos. A imagem de capoeiristas como símbolo de resistência já é comum. A de uma negra com roupa de baiana também. Porém a imagem de uma médica negra é coisa nova.
Lembrando da fala do Brown que eu citei no começo, penso que ainda é preciso frisar que esta imagem, e toda a simbologia que ela traz consigo, só é possível por conta de programas criados na gestão do PT. O governo ilegítimo que tomou de assalto a presidência começou tentando extinguir o Ministério da Cultura (MINC), o que gerou grande mobilização entre os intelectuais e artistas por todo o Brasil.
No dia seguinte ao lançamento do clipe de Fioti, Caetano Veloso fez um show histórico na ocupação do MINC. Com um lindo cocar de penas brancas o compositor cantou, entre outras pérolas de seu repertório, Um Índio.
"E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos, não por ser exótico Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido óbvio"
Em 2006 Criolo lançou seu primeiro disco, o Ainda Há Tempo. Um clássico, cheio de pérolas que já integraram o repertório de vários shows. Mesmo assim, o disco de 2006 é um disco de rap underground, e longo pros ouvidos atuais (que contam com uma saturação de informação). É um disco anterior à fiel parceria entre Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. Nesta época seu principal parceiro apoiador era o DJ Dandan. União responsável pela criação da Rinha dos MC's, festa de hip-hop que formou e revelou vários dos principais talentos da nova geração de rappers de São Paulo. Ainda Há Tempo é um disco de um dos manos mais loucos do movimento hip-hop, o Criolo Doido. Dá uma olhada num show dele, na época: Criolo Doido, Live in SP.
Ontem, dia 06/05/2016, Criolo lançou seu terceiro álbum com produção do Ganjaman. Se trata de uma reedição do disco de 2006. Esse lance de regravar o mesmo disco, anos depois, com algumas adaptações, não é algo novo. Caymmi, por exemplo, regravou praticamente seu mesmo disco, voz e violão, em 1954 e 1959 (Canções Praieiras, e Caymmi e Seu Violão). Outro exemplo mais recente, Chico César regravou seu clássico Aos Vivos 16 anos depois. Ainda Há Tempo, 2016, se insere nessa tradição de álbuns revisitados pelos próprios autores.
O disco abre com É o Teste, canção que traz os versos:
"E a minha mãe que cuida de mim independente da minha idade, E quem não tem mamãe, valoriza e tem saudade. Eu respeito, há como eu respeito, Amor de mãe não se escreve, aí não tem defeito. Seria tão bom se a mãe da gente não sofresse, Não ficasse doente e também não envelhecesse. É coisa ruim, hoy, a gente até esquece, As mães que não compreendem os manos que cantam rap."
(Oportuno para a data de lançamento, próximo ao dia das mães.)
Com a já prevista altíssima qualidade de produção musical, o disco traz oito textos preciosíssimos para os dias atuais. Uma ótima oportunidade pra quem não conhece as canções mais antigas do Criolo se aproximar mais do movimento hip-hop, e pra quem já as conhece, percebê-las de outra forma. E que não passe desapercebido que a atualidade dos textos revela que os problemas que nos afligem são crônicos, e que enquanto não encararmos o rompimento com os ciclos viciados que estruturam nossa sociedade não estaremos minimamente preparados para o vertiginoso desmoronamento de um sistema em colapso, como o que vivenciamos.
O Nego Dito Itamar Assumpção já se reportava à uma tradição ancestral de respeito à força das mulheres. Sua canção Mulher Segundo Meu Pai faz parte de um gesto maior (envolvendo outras canções e a valorização de elementos musicais pouco comuns) que busca o desenvolvimento estético de uma nova sensibilidade, menos machista. Na polêmica canção InSOMnia, de 2014, Emicida entoa "quem não liga Itamar Assumpção que ver os milagres do Emicida como?". Começo meu texto traçando esse paralelo para apresentar o novo clipe do rapper paulista: Mãe.
Dentro do hip-hop a figura da mãe é tida como sagrada. Bem como na moral dos campinhos, onde só não pode colocar a mãe no meio, as batalhas de rimas e demais locais onde se manifesta a cultura hip-hop sempre trazem narrativas que valorizam o papel das mães. De fato, o apoio incondicional (que inclusive muitas vezes gera "machos mimados") das mães - quando estas existem - é um dos poucos portos seguros com que a alma de alguém que mora na periferia pode contar.
Dona Jacira, mãe do Emicida e do Fioti, já foi homenageada diversas vezes pelos filhos e também já participou como parceira de outros trabalhos (Jacira e Crisântemo). Neste novo clipe (quarto vídeo do novo disco) ela volta a aparecer, tanto como homenageada como performer de sua própria poesia. Lembremo-nos que ela já havia marcado forte presença no clipe de Boa Esperança, onde vive uma empregada doméstica insurgente. Em Mãe, um quase espelho de Crisântemo (que é uma canção em memória do já falecido pai dos irmãos Leandro e Evandro), Dona Jacira aparece mais uma vez como uma figura forte, capaz de inspirar e servir de exemplo para outras mães.
O filme de Levi Riera possui uma trama que se sobrepõe à canção, de forma indireta, mas se articula conforme suas partes. O que vemos é um sonho do rapper, que ao final desperta escutando sua própria canção. A "sala principal" desse sonho é uma paisagem bucólica, uma floresta (plantação) de eucalipto, onde o MC vaga, encontrando um piano de brinquedo que dispara a canção. Depois desse encontro com a música, Emicida volta a perambular, até encontrar algumas portas, que acessam lembranças. A canção se divide em duas estrofes que desembocam no refrão (da Anna Tréa, cantora/violonista da banda) antes de concluir com a seção declamada (Spoken Word) da Jacira. Cada estrofe corresponde à uma sequência do filme. A primeira é uma história de opressão dentro de um colégio católico, onde as freiras brigam com uma menina negra por algo que ela estava escrevendo, e como punição colocam a menina para limpar o chão. Emicida está sonhando com uma história de sua mãe.
A segunda porta, que se articula com a segunda estrofe, leva o rapper para seus tempos de garoto. Esta sequencia é bem interessante do ponto de vista formal, pois possui dois espaços opostos: a reunião familiar, em casa, e a balada. O jovem - que é o Emicida moleque - meio que desperta de um encanto (festas vazias de significados) com a voz da mãe, que o chama pra casa.
Na última seção temos a porta que leva Emicida ao encontro de sua mãe, que interpreta seu próprio texto contando sobre o nascimento do rapper. A imagem da mãe funde-se (pela montagem dos planos) à do pianinho de brinquedo. Talvez seja importante lembrar que a palavra música provém de musas. Neste caso, a mãe/musa é mãe/música. E é ainda de se notar como aquela mulher, que vimos como uma criança oprimida e depois como uma dona de casa, também oprimida, surge vertida numa matriarca poderosa no meio da mata.
Depois disso temos Emicida acordando em um quarto espaçoso e com mobília visivelmente mais cara (e uma gracinha meio Harry Potter pra ficar de fundo enquanto passam os créditos). O vídeo saiu estrategicamente para dialogar com a data do dia das mães (este lance de lançar música pra "datas especiais" tá ficando cada vez melhor!). Mas muuuuiiiito além de ser uma homenagem à mãe, este clipe toca em discussões muito profundas e urgentes para o Brasil. Nessa semana em que as escolas preparam e realizam homenagens para as mães, na maioria das vezes partindo de uma construção de maternidade idealizada dentro de modelos judaico-cristãos, temos um momento oportuno para pensarmos questões relacionadas à família. Questões estas que devem ser cada vez mais debatidas e conscientizadas, sendo talvez a única forma de barrar a onda reacionária que cresce em nosso solo e ganha força com o golpe que está em andamento. Retomando a referência que eu havia feito no início ao Itamar, o que Emicida propõe com este novo clipe é uma evidente valorização de sua ancestralidade africana, que assim como no caso do Nego Dito, lança outras luzes e possibilidades para compreendermos a família.
Os Racionais MC's lançaram (dia 26/04/2016) o primeiro clipe de seu último álbum. Um Preto Zica é a sexta "cena" do disco Cores e Valores, de 2014. O álbum, que é composto por quinze faixas, em geral bem curtas, possui um caráter cinematográfico, cheio de cortes, ângulos e ações. As primeiras sete faixas compõe uma espécie de variações sobre o mesmo tema: Cores e Valores.
O compositor Arnaldo Antunes tem uma canção onde, resumidamente, celebra nossa fusão de culturas e etnias. Nesta canção ele diz "somos o que somos, somos o que somos, inclassificáveis". Em contrapartida o disco do Racionais MC's reconstrói essa narrativa pautada no mito da democracia racial e expõe um argumento que evidencia o conflito: "somos o que somos, somos o que somos, cores e valores".
O clipe de Um Preto Zica é uma parceria com KondZilla, uma importante produtora áudio/visual do funk ostentação paulista. Como informa matéria no G1, "Kondzilla tem mais de 1 bilhão de cliques somados em seu canal no
YouTube. Nas primeiras quatro horas no ar, o novo clipe teve mais de 100
mil acessos."
A letra, com um refrão de Mano Brown que Caetano Veloso teria gosto de assinar, tem o desenvolvimento do argumento feito por Edi Rock. Como o disco e a estética dos Racionais MC's já previam, se trata de um clipe pesado. Violento. E possui como público alvo justamente a juventude que se identifica com a estética da ostentação. Uma pequena crônica de uma treta envolvendo personagens comuns e estereotipados: um delegado, um detetive, um X9, um ganso, a polícia e o preto zica.
"Preto zica, truta meu, disse assim "Ih truta, mó fita! " O truta meu disse assim (vai vendo) Preto zica, truta meu, disse assim "Mó fita, mó treta! " o truta meu disse assim (que fita) Preto zica, truta meu, disse assim "Ih truta, mó fita! " o truta meu disse assim (vai vendo) Preto zica, truta meu, disse assim "Mó fita, mó treta! " o truta meu disse assim (que fita)
Veja quanta ideia, bonitão Os truta aqui tão, no mó conchavo Torcendo por você e calculando seu cada centavo Ficaram cego e a meta é tomar seu lugar Intravenosa, venenosa, via jugular Eu não quero tá na pele dos que leva e traz Nem imaginar ou sumariar esse rapaz Salve, mas um truta meu assim me disse "Negar dinheiro é o carai, não fala tolices" Que nem boliche, vixe, apavorou
Mas o resultado é consequência que o mestre falou É tudo um teste, how! É como peste Alastra e arrasta até que nada do nada me reste Um truta meu me disse que o chicote estala O inimigo da risada da sua vala no sofá da sala Como se fala: "uma bala, escolha a sua! " Encomenda o fracasso do palhaço em plena luz da lua Quem de alma nua atua na sua mente Faz você achar que o azar é só mero presente
Que aquela treta do passado se torne recente Remanescente, dificilmente sai da guerra cientes É deprimente, inocente, não olha pra frente Em cada mente um pensamento desse inconsequente Ou indecente, tente, ou iminente, é quente É simplesmente: São vários e vários doentes"
Edi Rock interpreta o Preto Zica, e ostenta violência e força, valores que - infelizmente - são insígnias de respeito nas ruas. Nunca interessou ao RAP, em específico aos Racionais, sustentar algum discurso de conformidade com a ordem social vigente, uma vez que tal ordem escraviza, massacra e extermina a juventude que vive nas margens das grandes cidades. O público com o qual os Racionais dialoga, e tenta voltar a dialogar, é formado por seres humanos que convivem com a morte, injusta, cruel e sofrida, de seus amigos e familiares. Um público composto de gente pobre, que sonha com os paraísos de prazeres que a ideologia da ostentação promete.
Assim como este clipe articula as faixas 6 e 4 (na última parte do clipe, quando entra a voz dizendo "cores e valores, cores e valores", estamos na faixa Trilha), podemos esperar qualquer continuidade para esta narrativa que foi aberta. Não sabemos ao certo como tudo isso vai se desenvolver, mas apesar de estarmos escutando a nova estética dos Racionais, ainda temos o princípio que liga a ideologia de Brown (e dos demais Racionais) com a do RAP dos anos 1990. As ideias de Eduardo, ex Facção Central, fornecem um exemplo perfeito de contraponto harmonioso com Brown, mas que no fundo aponta para a mesma coisa: existe um extermínio e uma guerra velada.
É interessante notar ainda que este clipe, que apresenta uma face não amigável de Edi Rock, foi lançado um dia depois do clipe do rapper em parceria com a Caixa Econômica Federal, em apoio às Olimpíadas que serão realizadas daqui menos de cem dias, no Rio de Janeiro. Em Conquista Edi Rock compõe rimas que buscam aproximar o esporte com o RAP. Neste clipe ele aparece soltando golpes de Boxe (um esporte importante dentro do imaginário do RAP, reverenciado em Quanto Vale o Show) e pregando uma certa união em torno das cores da bandeira (e isso não é nada relacionado à um movimento apoio à direita, que tomou para si as cores da bandeira em oposição ao vermelho, e sim à reapropriação de uma representatividade de nação).
Tanto um como outro trabalho sofrem implicações de leitura por conta do momento político que estamos vivendo no Brasil, hoje. Semana passada Mano Brown deu um depoimento em que dizia que a periferia havia abandonado o governo, e que para ele se encerrava um ciclo. Enquanto isso as olimpíadas avançam com brutalidade sobre a favela.