terça-feira, 30 de agosto de 2016

Elza Soares: uma mulher brasileira

Luana Gomyde
Colaboração: João Vitor Nakao



Escutar “Benedita” é mergulhar na densidade da história de uma transexual por meio dos vários aspectos musicais interligados e muito bem pontuados. A canção foi composta por Celso Sim e Pepê Mata Machado para a intérprete Elza Soares e faz parte do álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, lançado em 2015 pela cantora. O clima da música e, consequentemente, da história de Benedita é estabelecido pelo arranjo que conta com guitarras distorcidas e metais.
Logo no início, conhecemos Benedito e sua força de vida: “esse nêgo que quebra o quebranto”, “filho certo de tudo que é santo”. Também, percebemos os obstáculos que precisa enfrentar: “Benedito é fera ferida”, “traz na carne uma bala perdida”. Nessa parte da letra, guitarra e bateria alternam riffs melódicos e ostinatos percussivos, confirmando a persistência de Benedito. Aos poucos, as células repetitivas parecem querer desmanchar, porém nunca completamente.
Então, uma pausa brevíssima. Agora a música soa mais fluida, possui mais gingado e os metais surgem com melodias que parecem flutuar sobre a cama criada pelos demais instrumentos. Somos apresentados à Benedita: malemolente e malandra, mas corajosa e guerreira – “ela leva o cartucho na teta”, “ela abre a navalha na boca”. A partir da apresentação completa de Benedito/Benedita, o arranjo se densifica, como se caminhasse para seu clímax. A letra nos revela a violência da polícia, uma milícia, e tensiona o momento do ataque: ela se prepara. Nesse ponto, é feito um trocadilho interessante com as palavras crack e craque, pois Benedita é craque – lutadora, viva, vencedora – e convive com o crack – drogas, destruição, miséria.
Em um terceiro segmento, pode-se notar mais uma mudança de clima, dessa vez proposta pela melodia das vozes. Todas as dualidades de Benedito/Benedita são expostas: é homicida, suicida, aparecida, bendita, maldita, senhora – apavora! Os adjetivos empregados fazem, também, alusão à Nossa Senhora Aparecida, ícone religioso tipicamente brasileiro.
Nesse momento, outra intertextualidade marcante na canção é ressaltada: Benedita molda-se à imagem e semelhança de Geni, prostituta protagonista da música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque. Benedita e Geni sofrem o mesmo descaso, estão à margem da sociedade, sempre julgadas e sem direito de resposta. Ainda, ambas representam a dualidade mais básica do homem em um mundo regido pelo jogo de interesses, o ser mau ou bom: “maldita Geni”, “bendita Geni”. A referência à personagem, presente na música toda e em seu contexto simbólico, fica estancada no verso “crack agora, não demora, joga a pedra, nessa hora”, que remete imediatamente ao bordão “joga pedra na Geni” da canção de Chico Buarque.
Finalmente, comprovando mais uma vez sua resistência, ela “vem armada, não rendida, faz do beco sacristia”. Um instante caótico se instaura na música e, quando imaginamos ser o fim da canção, uma última surpresa: a volta do início, que adquire um novo significado por conhecermos a história de Benedita agora. Ainda, outro aspecto importante para a construção da música é a contraposição e a transmutação das vozes de Elza Soares e Celso Sim.
De forma sintetizada, “Benedita” é uma excelente opção para tratarmos das questões de gênero, cada vez mais presentes em nossa sociedade. Cruamente e sem lirismos, pode-se refletir sobre os obstáculos enfrentados pelas pessoas que decidem assumir essa transformação em suas vidas. Importantes valores como liberdade, respeito e diversidade emanam da composição, acrescidos, ainda, das temáticas da violência, da miséria e das desigualdades sociais e econômicas.

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Benedita” faz parte do conjunto de onze faixas inéditas que compõem o álbum “A Mulher do Fim do Mundo” de forma instigante e inspiradora. O CD é um passeio pelos círculos do inferno de hoje e conta com as concepções de diversos músicos extremamente ativos no cenário musical paulistano atual: Guilherme Kastrup, Celso Sim, Romulo Froés, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Thiago França, Marcelo Cabral e os músicos da banda Bexiga 70 – Cuca Ferreira, Daniel Gralha, Daniel Nogueira e Douglas Antunes. O resultado apresentado no álbum é fruto da idealização de criações artísticas, desses músicos, destinadas a Elza Soares e sua irreverência.


Em convergência com as considerações de Kiko Dinucci em seu texto “Caminhos da polifonia contemporânea”, vale salientar que, assim como a “polifonia cacofônica de São Paulo”, o álbum “A Mulher do Fim do Mundo” resgata os sons das ruas – a paisagem sonora dos grandes centros urbanos – de uma forma esteticamente enérgica e permite encontrar a beleza que floresce dos aparentes defeitos.
Coração do Mar”, de José Miguel Wisnik, com letra de Oswald de Andrade, é à capela: nas sombras, a voz de Elza Soares ilumina o início dessa jornada náutica. Em sequência, “Mulher do Fim do Mundo”, de Romulo Fróes e Alice Coutinho, traz a cantora como narradora do apocalipse: a desintegração ocorre durante o carnaval – a pele preta, a voz e o resto espatifados na avenida. Elza resiste, pede que a deixem “cantar até o fim”, e as notas longas da melodia traduzem perfeitamente o cansaço e a persistência.
Maria da Vila Matilde”, de Douglas Germano, trata da violência doméstica: “cadê meu celular, eu vou ligar pro 180”, “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Distorções sonoras se misturam à melodia e samba, rock e rap se integram. Também, em "Luz Vermelha", de Kiko Dinucci e Clima, rap e punk rock são sobrepostos e o apocalipse é recortado em cenas de periferia, tiroteio e ruas esvaziadas. A favela torna-se o cenário do fim do mundo e do Brasil e, ao mesmo tempo, o lugar de onde pode ser reconstruído. A reação perante a destruição é a chance de um renascer das cinzas.
A canção “Pra Fuder”, de Kiko Dinucci, é um samba rápido em que o tesão é cantado sem frescura e alardeado pelo naipe de metais. Em “Firmeza?!”, Rodrigo Campos cria mantras a partir de gírias talvez pertencentes aos arredores de seu cotidiano. Angústia e fraternidade pincelam a música, gravada em duo com o autor.
O tango “Dança”, de Cacá Machado e Romulo Fróes, se situa depois do fim: a narradora está morta; quase pó, insiste em dançar. Elza não desiste. O oriente chega por meio da sonoridade e da letra de “O Canal”, de Rodrigo Campos, e seu arranjo segue no ritmo da caminhada feita em busca de algo, do renascer.
Em “Solto”, de Marcelo Cabral e Clima, como o título e as notas soltas indicam, a travessia é solitária, sem nada mais. Não há guitarras ou distorções, as quais voltam no início de “Comigo”, de Romulo Fróes e Alberto Tassinari. O crescendo ruidoso estanca de repente e Elza ressurge à capela, em tom de oração, de lamento sertanejo: “levo minha mãe comigo, pois deu-me seu próprio ser”. Então, um longo silêncio do fim de tudo. Porém, sua voz permanece ao fundo... Elza insiste!

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Como falar de “A Mulher do Fim do Mundo” e não pensar na trajetória de vida de Elza Soares? Mulher, negra, nascida em uma comunidade pobre do Rio de Janeiro: Elza é a representação da minoria. Para além de sua voz rouca única, a cantora é conhecida por quebrar paradigmas, pois sabe o que é discriminação. Elza Soares tornou-se um ícone para o Brasil.
Sua voz misturou muito jazz e samba desde seus 13 anos e rendeu gravações com grandes nomes da música brasileira, como Roberto Ribeiro, Wilson das Neves e Milton Nascimento. Segundo Ronaldo Bôscoli, é a “bossa negra”. Na década de 80, estreou no cenário pop: sempre contemporânea, feliz e coerente na escolha de repertórios. Elza passeia tranquila em qualquer território com seu timbre especial e o balanço que faz sua voz soar como um instrumento. Uma artista que vive seu tempo e não envelhece. Uma mulher que sacode a poeira, levanta e dá a volta por cima.


Referências

VIANNA, Luiz Fernando. Elza Soares renasce das cinzas com seu já histórico novo disco. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1689464-elza-soares-renasce-das-cinzas-com-seu-ja-historico-novo-disco.shtml>. Acesso em: 23 fev. 2016.

PALUMBO, Patrícia. Elza Soares é foda! Disponível em: <http://elzasoares.com.br/elzasoares/biografia/>. Acesso em: 23 fev. 2016.

Elza do Brasil. Disponível em: <http://elzasoares.com.br/elzasoares/post-2/>. Acesso em: 23 fev. 2016.

Informações sobre o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”. Disponível em: <http://www.amulherdofimdomundo.com/>. Acesso em: 28 fev. 2016.

DINUCCI, Kiko. Caminhos da polifonia contemporânea. Disponível em: <http://outroscriticos.com/caminhos-da-polifonia-contemporanea/>. Acesso em: 25 ago. 2016.