quinta-feira, 28 de abril de 2016

Racionais e a crise: Um Preto Zica e Conquista

João de Carvalho



Os Racionais MC's lançaram (dia 26/04/2016)  o primeiro clipe de seu último álbum. Um Preto Zica é a sexta "cena" do disco Cores e Valores, de 2014. O álbum, que é composto por quinze faixas, em geral bem curtas, possui um caráter cinematográfico, cheio de cortes, ângulos e ações. As primeiras sete faixas compõe uma espécie de variações sobre o mesmo tema: Cores e Valores. 

O compositor Arnaldo Antunes tem uma canção onde, resumidamente, celebra nossa fusão de culturas e etnias. Nesta canção ele diz "somos o que somos, somos o que somos, inclassificáveis". Em contrapartida o disco do Racionais MC's reconstrói essa narrativa pautada no mito da democracia racial e expõe um argumento que evidencia o conflito: "somos o que somos, somos o que somos, cores e valores".

O clipe de Um Preto Zica é uma parceria com KondZilla, uma importante produtora áudio/visual do funk ostentação paulista. Como informa matéria no G1, "Kondzilla tem mais de 1 bilhão de cliques somados em seu canal no YouTube. Nas primeiras quatro horas no ar, o novo clipe teve mais de 100 mil acessos."

A letra, com um refrão de Mano Brown que Caetano Veloso teria gosto de assinar, tem o desenvolvimento do argumento feito por Edi Rock. Como o disco e a estética dos Racionais MC's já previam, se trata de um clipe pesado. Violento. E possui como público alvo justamente a juventude que se identifica com a estética da ostentação. Uma pequena crônica de uma treta envolvendo personagens comuns e estereotipados: um delegado, um detetive, um X9, um ganso, a polícia e o preto zica.

"Preto zica, truta meu, disse assim
"Ih truta, mó fita! "
O truta meu disse assim (vai vendo)
Preto zica, truta meu, disse assim
"Mó fita, mó treta! " o truta meu disse assim (que fita)
Preto zica, truta meu, disse assim
"Ih truta, mó fita! " o truta meu disse assim (vai vendo)
Preto zica, truta meu, disse assim
"Mó fita, mó treta! " o truta meu disse assim (que fita)

Veja quanta ideia, bonitão
Os truta aqui tão, no mó conchavo
Torcendo por você e calculando seu cada centavo
Ficaram cego e a meta é tomar seu lugar
Intravenosa, venenosa, via jugular
Eu não quero tá na pele dos que leva e traz
Nem imaginar ou sumariar esse rapaz
Salve, mas um truta meu assim me disse
"Negar dinheiro é o carai, não fala tolices"
Que nem boliche, vixe, apavorou

Mas o resultado é consequência que o mestre falou
É tudo um teste, how! É como peste
Alastra e arrasta até que nada do nada me reste
Um truta meu me disse que o chicote estala
O inimigo da risada da sua vala no sofá da sala
Como se fala: "uma bala, escolha a sua! "
Encomenda o fracasso do palhaço em plena luz da lua
Quem de alma nua atua na sua mente
Faz você achar que o azar é só mero presente

Que aquela treta do passado se torne recente
Remanescente, dificilmente sai da guerra cientes
É deprimente, inocente, não olha pra frente
Em cada mente um pensamento desse inconsequente
Ou indecente, tente, ou iminente, é quente
É simplesmente: São vários e vários doentes"
 
Edi Rock interpreta o Preto Zica, e ostenta violência e força, valores que - infelizmente - são insígnias de respeito nas ruas. Nunca interessou ao RAP, em específico aos Racionais, sustentar algum discurso de conformidade com a ordem social vigente, uma vez que tal ordem escraviza, massacra e extermina a juventude que vive nas margens das grandes cidades. O público com o qual os Racionais dialoga, e tenta voltar a dialogar, é formado por seres humanos que convivem com a morte, injusta, cruel e sofrida, de seus amigos e familiares. Um público composto de gente pobre, que sonha com os paraísos de prazeres que a ideologia da ostentação promete. 

Assim como este clipe articula as faixas 6 e 4 (na última parte do clipe, quando entra a voz dizendo "cores e valores, cores e valores", estamos na faixa Trilha), podemos esperar qualquer continuidade para esta narrativa que foi aberta. Não sabemos ao certo como tudo isso vai se desenvolver, mas apesar de estarmos escutando a nova estética dos Racionais, ainda temos o princípio que liga a ideologia de Brown (e dos demais Racionais) com a do RAP dos anos 1990. As ideias de Eduardo, ex Facção Central, fornecem um exemplo perfeito de contraponto harmonioso com Brown, mas que no fundo aponta para a mesma coisa: existe um extermínio e uma guerra velada.

É interessante notar ainda que este clipe, que apresenta uma face não amigável de Edi Rock, foi lançado um dia depois do clipe do rapper em parceria com a Caixa Econômica Federal, em apoio às Olimpíadas que serão realizadas daqui menos de cem dias, no Rio de Janeiro. Em Conquista Edi Rock compõe rimas que buscam aproximar o esporte com o RAP. Neste clipe ele aparece soltando golpes de Boxe (um esporte importante dentro do imaginário do RAP, reverenciado em Quanto Vale o Show) e pregando uma certa união em torno das cores da bandeira (e isso não é nada relacionado à um movimento apoio à direita, que tomou para si as cores da bandeira em oposição ao vermelho, e sim à reapropriação de uma representatividade de nação). 
 
 

Tanto um como outro trabalho sofrem implicações de leitura por conta do momento político que estamos vivendo no Brasil, hoje. Semana passada Mano Brown deu um depoimento em que dizia que a periferia havia abandonado o governo, e que para ele se encerrava um ciclo. Enquanto isso as olimpíadas avançam com brutalidade sobre a favela.




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