domingo, 12 de outubro de 2014

O diálogo entre Rael e Caetano, ou O Rap Tropicalista da Laboratório Fantasma

João de Carvalho

 








O terceiro disco da trilogia da Banda Cê,
o "Um Abraçaço" (2012), de Caetano Veloso,
se inicia com a canção "A Bossa Nova é Foda".
Walter durante evento na UEL


[tendo em vista que o diálogo 
que pretendemos revelar se refere à relação hip-hop/tropicália, 
é importante lembrar que este é o disco que contém o "Um Comunista", 
principal contraponto a 
"Mil Faces de Um Homem Leal" 
(obras em memória de Mariguela), 
onde Caetano aprofunda a voz pessimista, que é a tônica deste seu mais recente período.] 

                                    
- discordo de Walter Garcia em dois aspectos... talvez três. 
             Primeiro, em dividir o Caetano em 3 partes (artista, pensador e marqueteiro). 
   A explicação convence por que é engraçada e faz a fala fluir durante um evento acadêmico, 
       mas o homem é muito mais contraditório e complexo, e reduzir Caetano à este esquema
            é ignorar o humano da figura histórica. 
                  Segundo, acho que hip-hop e tropicalismo tem "muito a ver". 
      São movimentos, compostos por pessoas que dialogam, e nisso trocam suas experiências sobre conflitos comuns ao ofício e à vida. 
            Caetano e Racionais são contemporâneos, oras! 
                   E terceiro, que é uma decorrência do segundo aspecto, 
             essa ideia de "linha evolutiva da canção brasileira" é uma ideia do Caetano jovem, 
       profundamente influenciado pela presença dos poetas concretos. Isso é que não tem nada a ver, gente!
    É sempre bom ter em mente que a Poesia Concreta, 
       por maior que seja sua relevância histórica,      (e aqui minha prosa porosa, que não diz o contrário)
    é um movimento de "vanguarda tardia". 
            O que presenciamos hoje é um quadro de produção muito mais rizomático
         e falar sobre a relação entre Tropicália e Hip-hop não é, 
                                                                                              de forma alguma, 
                         colocar uma como consequência da outra.


Sabemos também que a banda Cê propõe uma espécie de "retomada da sonoridade"
do disco "Transa", de 1972.
        Disco este que é tido, por grande parte de uma geração de novos cancionistas/produtores,
como o melhor trabalho de Caetano.
        O disco da Juçara,
e cito justamente esse exemplo pois, além dela participar do DVD do Criolo e do Emicida,
o Encarnado foi objeto de uma resenha anterior,
e tem ecos claros do Transa,           ........          ........    e tb do Tom Zé e do Itamar
                                                          (um pós-tropicalista, como salientou o próprio Walter).

Dentre as conquistas que Caetano realizou em 72,
está o aprofundamento da qualidade dialógica da canção,
um aprofundamento dos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade...
veio esse aberto 
por João Gilberto...

e a criação
(junto com sua banda, que contava com
Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa)
-um aspecto de horizontalidade _rizomática_ de produção-

de uma sonoridade mais "orgânica",
menos formatada...

maiores explorações de texturas e timbres,
em detrimento do desenvolvimento harmônico bossa-novista
(aqui talvez a resposta do 
"pq o Itamar conseguiu algum eco posterior, e o Arrigo não"...)

e,
voltando à primeira faixa do Abraçaço:

A Bossa Nova é Foda

O bruxo de Juazeiro numa caverna do louro francês
(quem terá tido essa fazenda de areais?)
Fitas-cassete, uma ergométrica, uns restos de rabada
Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação
Pura-invenção, dança-da-moda
A bossa nova é foda

O magno instrumento grego antigo diz que quando chegares aqui
Que é um dom que muito homem não tem que é influência do jazz
E tanto faz se o bardo judeu romântico de Minnesota
Porqueiro Eumeu o reconhece de volta a Ítaca
A nossa vida nunca mais será igual
Samba-de-roda, neo-carnaval, rio São Francisco
Rio de Janeiro, Canavial
A bossa nova é foda

O tom de tudo comanda as ondas do mar
Ondas sonoras com que colore no espacial
Homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental

Deu ao poeta, velho profeta, a chave da casa de munição
O velho transformou o mito das raças tristes
Em Minotauros, Junior Cigano
Em José Aldo, Lyoto Machida
Vítor Belfort, Anderson Silva
E a coisa toda
A bossa nova é foda.



Essa canção apresenta uma análise, pelo viés tropicalista, do que foi a Bossa Nova.
Uma verdadeira aula sobre história da cultura brasileira.
Aqui, como em muitos outros casos, fica claro o papel educacional que a canção possui no Brasil.
De uma forma enviesada,
                                               que é característica da proposta tropicalista,
Caetano relaciona a agressividade e sensibilidade feminina da Bossa Nova e dos lutadores de MMA.

As duas primeiras estrofes fazem referência a imagem de João Gilberto,
a terceira, que corresponde à parte B da canção, é uma homenagem ao maestro do movimento.

Jobim aparece aqui como o
"Homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental"
responsável por dar ao poeta (Vinícius) a "chave da casa de munição".
UM TROCADILHO GANGSTA!!

O vídeo, por sua vez,
joga de maneira bem curiosa com imagens que sugerem o lado feminino das lutas de MMA...



O Rael,
              mais um dos grandes talentos do hip-hop nacional,
                  foi ao show do Caetano Veloso, acompanhado do Emicida,
 e quando Caetano cantou "A Bossa Nova é Foda"
na hora ele disse aos seus manos,
vou fazer "O Hip-hop é Foda".
E assim fez!
Esse,
           é bom da gente lembrar,
é o processo mais comum de criação de um um Mc,
o diálogo intertextual.
               Normalmente um rimador pira em uma levada,
       uma "batida perfeita" (D2),
uma base sobre a qual seus versos vão fluir (flow) e com a qual vão dialogar.
                                  Sim,
           pois a base sempre sugere uma atmosfera,
   e a letra (as boas, né?)
é meio que "contaminada" por este clima,
que acaba por sugerir uma temática ou uma forma de desenvolvimento...

"Começamos nos guetos das grandes capitais 
Movimento dos pretos e de seus ideais
Somos filhos de Ketu, somos originais
Hip hop é feito com tempero de paz
Dançamos por aí, grafitamos murais
Lá eles têm Jay-Z, aqui tem Racionais
Pode ser Mc, se não for tanto faz
O importante é sentir 
que o hip hop é foda

Mas é um universo imenso em cada verso
E cada vez que verso, com alguém eu converso
Cada canto que toca,seja pro muthafukka
Pra quem é do pipoco ou se é só é pipoca
Seja careta ou louco, seja boy ou maloca
Isso pra mim é pouco o importante é que
o hip hop é foda


Já salvou muito mais que várias ongs banais

Dialogou muito mais que professores e pais
Projetos sociais não seduz marginais
Mas põe um rap pra ouvir a diferença que faz
Eu sei que é foda e que tá na moda
Mas quando é pesado e verdadeiro te incomoda
É foda, é fato, tempo quatro por quatro
Mc, b-boy, grafite e o Dj riscando os pratos
o hip hop é foda"



O Rael faz parte do quadro de "funcionários" da Laboratório Fantasma, a empresa que o Emicida e seu irmão, Evandro Fioti, fundaram em 2008. Dentre os lançamentos da Lab_fantasma, temos os excelentes discos (lançados em LP!) do Emicida e o do Rael, além do já fundamental DVD Criolo e Emicida ao vivo, de que tanto falo. Bem, a ideia de "responder" Caetano Veloso encontrou apoio no grupo, e em pouco tempo a canção (ou parte dela, se é que ela existe completa...) já estava sendo apresentada no prêmio Multishow,  nas vozes de Emicida e Caetano Veloso.




A estrutura da apresentação do Prêmio Multishow contava com um pequeno palco central circundado por uma série de super telões, estes, por sua vez, projetavam imagens dos cantores fundidas ou entrecortadas com motivos que "saltaram" das letras performatizadas. Me chama a atenção o último ciclo, que corresponde às duas canções que estamos debatendo neste post, em que a imagem escolhida para dialogar com as faces dos cantores foi uma fita k7 (por volta dos 4:50 do vídeo). Esta imagem, que salta da letra do Caetano, parece sugerir a presença da Lab_fantasma por trás daquela reunião, ao quase evocar a logo.



Em sua "resposta", o Mc aproveita vários pontos da canção de Caetano. O primeiro, mais explícito, é o refrão, que já é um mote figurativo (nas categorias de compatibilidade do Tatit, o momento em que a melodia cola co'a fala) perfeito para um rap. Em segundo lugar, a primeira sequência de rimas em "ais" parece ecoar o "areais" do baiano. Em terceiro (claro que esta ordem só existe na minha "ex-planation"), o movimento maquínico do violão base é um "arremedo" do violão de Caetano, e parece sugerir um movimento crescente (associado ao desenvolvimento gradual da participação do Dj) de uma "revolução silenciosa", que foi germinando e em pouco tempo já ganhou seu espaço. Outra questão liga os três movimentos: bossa-nova, tropicália e hip-hop são produtos (danças) da moda! Mas, ao contrário de Caetano, ao invés de simplesmente citar este dado, Rael completa "mas quando é pesado e verdadeiro te incomoda"!

A canção de Rael tem dois "clipes" gravados. O primeiro, lançado pela Laboratório Fantasma, aparece o Rael, o DJ Will (filho do grande DJ KL Jay) e o Bruno Dupré. Este é o "vídeo oficial", uma pequena produção destinada à divulgação da canção que não integra nenhum disco e foi lançada de forma autônoma. O formato é quase uma citação ao banquinho e violão da bossa nova (é muito incomum ver um MC sentado, cantando e se acompanhando ao violão). O segundo, produzido por Rodrigo Beetz, é uma recriação livre, que conta um pouco da história de mais uma vida que se engaja no hip-hop, mas aqui através da dança. Acho muito interessante essa liberdade, e vontade, de dialogar com a obra de um artista, um movimento que transpõe a barreira entre produtores culturais e público.




Outro vídeo que podemos conferir como esta canção se metamorfoseia e vai agregando múltiplos interlocutores, é o de uma câmera do meio da platéia do show Cada canto um rap, cada rap um canto", que ocorreu no dia 19/06 deste ano, no SESC Campo Limpo. Neste registro vemos a obra se estender por 14:30, sendo um convite pra vários Mc's improvisarem sobre a força do hip-hop. Dentre os vários improvisos, que temos que fazer uma grande força para compreender pois o áudio está comprometido, existem alguns momentos que são realmente emocionantes. Um destes momentos é a participação de Marechal, por volta dos 7:00... vale a pena conferir:




Mas esse papo não é de agora, não!
Vem se intensificando cada vez mais, 
adquirindo novos contornos 
e projetando novas consequências...
mas esse papo já está presente desde o início da Lab_fantasma.

Em 2009 Emicida lançou sua primeira mixtape.
A vigésima primeira faixa deste trabalho é a primeira parceria entre Rael e Emicida.
Me refiro justamente à "Outras Palavras", 
composição feita a partir de recortes da canção homônima de Caetano. 



Aqui também existe um aproveitamento muito mais profundo do texto original 
do que simplesmente uma base qualquer.
Na canção original Caetano argumenta que busca, por meio de seu manuseio das palavras,
admitindo sua existência enquanto linguagem, uma busca por outras palavras, mais positivas...
tudo isso dentro de um texto que, por mais peripécias linguísticas que possua,
incluindo um final apoteótico com ecos de Catatau, 
se trata de uma canção de amor,
de dor de amor...

Emicida e Rael desenvolvem diferente,
buscando focar a positividade de uma relação que agora goza dos frutos de um trabalho focado e responsável. Essa que é, desde o início, a perspectiva de Emicida, se vincula à referências muitas vezes negligenciadas do hip-hop. Vozes como Kamau e Speed são referências reveladas de precursores de uma "certa" corrente que busca transpor os conflitos explorados pela geração dos anos 90, transpondo barreiras que parecem (só de longe) marcar e isolar a sonoridade do rap...

E, voltando às canções que estamos tratando,
a "parceira" Caetano Veloso / Emicida teve um desdobramento muito interessante durante o evento
"Cidadania nas Ruas", produzido pela Lab_fantasma, realizado no Auditório Ibirapuera, para 30 mil pessoas.
O pequeno Doc realizado dá bem uma ideia da reunião que foi este evento.
(e tem o Emicida cantando Haiti, o que isso significa? pouca coisa não é!)


 Compensa assistir aos 3 vídeos deste Doc., pois ali temos os personagens de todo este meu texto dialogando e frisando as mutuas referências. Mas gostaria de apontar um outro vídeo, também produção da Lab_fantasma, intitulado "Insomnia". Este, uma parceria entre Rodrigo Ogi e Emicida, causou polêmica por causa dos versos "tem 2 tipo de MC, 2, digo, os que faliu e os que aprendeu algo comigo". Mas, para além das ambiguidades que a letra sustenta - é claro que dizer que o Emicida está falando exclusivamente dele mesmo é um grande erro de interpretação, mas ignorar que ele está comentando também sobre sua situação no quadro cultural do hip-hop nacional é outra grande armadilha - me chama muito a atenção os versos "gueto até umas hora, no trono/ quem não liga Itamar Assumpção quer ver os milagre do Emicida como?".




Qual Itamar? 
O que elaborou toda uma sonoridade?
O Itamar que era foda de flow? Pq a palavra mastiga na boca do Nêgo Dito!
O Itamar bandido? O que subverte o sistema?
Ou o que faliu?
Seja qual for
como ícone ou precursor
Emicida afirma que Itamar Assumpção é uma chave de leitura para seu trabalho.

Itamar   
um pós-tropicalista
que por força de seu tempo
morreu sem o devido reconhecimento
de público e de cachê que justamente merecia.

O valor de Emicida está - entre outras coisas - em ter conseguido imprimir uma marca
ter virado um próspero empresário,
em uma firma familiar,
empregando uma galera criativa em torno de ideais de mundo.
É como se Emicida olhasse para o Itamar e disse-se:
vingado, é nóiz!

E, se a "revolução" é de alguma forma como Mano Brown anunciou recentemente,
em entrevista à revista Cult:



"Qual é o maior compromisso da "revolução", entre aspas? É mostrar envolvimento, você pôr sua inteligência dentro dela, sua mão de obra, o conhecimento que você aprendeu naquela causa. Como é que você consegue mostrar isso? Quando sua empresa vai bem, quando você paga as pessoas. Aí é trabalho! Não é movimento, onde um faz e fica um monte de gente sem condições de fazer nada. Tem que dar condições das pessoas fazerem para ganharem seu dinheiro. Esse é o momento que a gente tá vivendo hoje. Essa é a maior evolução. Já não é a revolução do discurso, das coisas abstratas, morou? É do trabalho. Se fosse no campo, seria enxada e terra. É na cidade. É trabalho. É envolvimento. É vida, sabe? E é ideologia também."





O hip-hop é foda!
E pelo fato desse lance ser horizontal,
sem um herói que redime todo mundo

(Na canção nova do Criolo, Vai Ser Assim: 
"eles querem forjar heróis, pra manter o povo sem voz")

temos os caras do Racionais em uma situação de aprendiz.
A Boogie Naipe tá aí, pra não me deixar mentir...

Será que o gesto de Mano Brown
em afrontar uma espécie de cerco ideológico de dentro do hip-hop,
e encarar lançar um disco de canções de amor
não encontra com a postura dos tropicalista
em afrontar a coerção da canção engajada dos anos 60?
Será?

O "projeto tropicalista" foi contestado nos anos 1990,
justamente pelo rap dos Racionais Mc's,
agora
alguns dos principais produtores do hip-hop nacional
encontram-se em franco diálogo com a obra de Caetano.



Essa semana, inclusive, estréia o filme "Na Quebrada"...
no elenco os filhos de Mano Brown , Jorge e Domênica Dias...
e produção de Luciano Huck...
Ah, é!?
                   É.
E aí, se o filme for bom?
Se o filme "fizer bem"?
Eim?
Só digo uma coisa,
o disco do Edi Rock é muuuiiito bom!!!!
Ir ao Caldeirão ou não
                                      não muda o fato de que

O hip-hop é foda!