domingo, 8 de novembro de 2015

O caso do cronista pixador Ogi

João de Carvalho

O presente texto é um pequeno "mapa", parte de uma cartografia maior, cujo foco é perceber a articulação audiovisual dentro do hip-hop paulistano. Isso bem em linhas gerais. Interessa saber que posto aqui mais até para chamar a atenção para o lindo disco do Ogi, RÁ!.




O desenvolvimento do texto, porém, foca mais em uma única canção - a que tem videoclipe. Isso pq este texto tb está em movimento e construção, e começou a ser gestado de um ponto específico, à saber, dentro da disciplina de Humor Gráfico e Processos Sociais. Ainda pretendo expandir estas reflexões para outras obras do disco, e outros clipes do próprio Ogi. Mas isso não é uma promessa. Por enquanto, segue a reflexão sobre "Trindade pate 2".


Dentre as muitas formas que o “audiovisual como expansão da canção” pode assumir, está o vídeo/clipe de animação. Esta forma é caracterizada por elaborar uma narrativa, normalmente nos modelos já estabelecidos do vídeo/clipe comercial, em que se alternam a imagem do artista e um enredo dramático paralelo. Dentro de quase todos os estilos musicais existem casos de vídeo/clipes que se utilizam da animação, misturando-a com imagens fílmicas dos artistas – como no caso de Jack Johnson, em Upside Down – ou transformando os músicos em personagens de animações – como no caso radical dos Gorilaz, uma banda que só existe na forma de animação.

O rap paulistano, hora ou outra, também se vale desta forma de comunicação áudio/visual para divulgar suas canções. O exemplo mais recente, e talvez, até agora, mais bem sucedido, é o caso de “Trindade, parte 2” do rapper Ogi. O vídeo foi lançado no youtube no dia 02/12/2014, e foi a primeira faixa divulgada do disco lançado semana passada (Rá!), dia 02/10/2015.

Rodrigo Ogi é um rapper paulistano que rima desde 1994. Seu primeiro disco solo é o excelente “Crônicas da Cidade Cinza”, de 2011. Ogi, além de rimador é produtor de batidas, grafiteiro e pixador. A relação que ele tem com as imagens reverbera de maneira muito interessante em seus textos, que são identificados por muitos como verdadeiras “crônicas”. No disco que o Criolo lançou ano passado tem um verso em que ele diz “um cronista? Ogi!”, como uma homenagem ao estilo do rapper. Inclusive essa proximidade com o pessoal que toca com o Criolo pode ser sentida em praticamente o disco todo, e de maneira mais explícita nas faixas onde o grupo MetáMetá1 se manifesta. O produtor Daniel Ganjaman, braço direito do Criolo, soltou em sua página do facebook, no dia do lançamento de Rá!, que este era o disco que ele estava mais escutando já fazia semanas. Fato é que qualquer mapeamento do áudio/visual do hip-hop paulistano, feito de maneira séria, não pode passar batido pela figura contundente de Rodrigo Ogi, e o vídeo de “Trindade, parte 2” é uma ótima oportunidade para pixar o “Rá!”, do Ogi, neste livro de mapas.

Já na segunda cena de Trindade, vemos o letreiro/pixação da cena inicial de dissolver em uma nuvem de fumaça, enquanto passa um trem de metrô todo “grafixado”2, paisagem urbana típica, com a visível presença do gueto na vida pulsante das metrópoles. O personagem principal da primeira sequência, o cronista, vem em cima do trem, salta o viaduto e chega ao baile. A associação do personagem da animação com o rapper Ogi é direta, a começar por traços de semelhança, mas principalmente pela cena, já logo no final da primeira sequência, em que o personagem principal da animação aparece cantando o texto, como se fosse o próprio MC.

Após chegar ao bar - ao baile - o cronista também se dissolve, em meio à vozes confusas, entramos no território da alucinação, no domínio da percepção alterada pelas drogas. Uma parte do curto, mas denso, clipe se passa no rolé da loira psicodélica na bicicleta.

Esta personagem lisérgica vai se transformando até que vemos o enredo do filme, e da narrativa da canção, passar para o ângulo do fornecedor da “brisa”. A caracterização deste personagem, fornecedor de drogas na noite, é a de um sujeito negro, que bebe enquanto dirige infringindo várias normas de trânsito. Este, logo chama a atenção da polícia e inicia-se uma perseguição.

O final da trama é arrepiante, reforçado principalmente por conta da velocidade dos eventos que se sucedem em menos de 2 minutos, e vemos o traficante se executado pela polícia, e no lugar do traficante vemos o rapper do início. A mensagem não é clara e moralista como em uma narrativa de campanha anti-drogas, mas a ligação entre o consumo, o tráfico e a tragédia é feita de forma arrebatadora.

No programa Estamos Vivos3, apresentado pelo DJ KL Jay, integrante do Racionais MC's, podemos acompanhar uma entrevista interessantíssima com Rodrigo Ogi. Nela, acompanhamos os dois em um passeio na região da casa do MC, onde vemos rastros nos muros, de ocupações noturnas de grupos de grafiteiros. KL Jay leva Ogi à um Sebo, onde presenciamos um bate papo que comprova a relação entre Ogi e as artes visuais, principalmente às narrativas visuais. Seus rap's são crônicas, é certo, mas são crônicas de um ávido leitor de quadrinhos e pixador inveterado, que escreve como que desenha uma história.



O clipe de “Trindade, Parte 2”, por dialogar intimamente com a poética do hip-hop e em específico com a estética do MC, é uma boa forma de adentrar o universo textual, poético e imagético de Rodrigo Ogi, e foi um bom aperitivo para o disco “Rá!”, em que o cronista pixador aprofunda seu radicalismo textual, polifônico e labiríntico. A escuta do álbum sugere, como muitos discos de rap, uma narrativa fílmica.

1Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França.
2Neologismo – gíria – que traduz a forma de expressão híbrida, entre o grafite e a pixação.
3Programa número 3, disponível no youtube, no canal Noisey. A websérie apresentada por KL Jay é mais um belo exemplo de como o hip-hop se articula com programas independentes feitos diretamente para o youtube.