segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Quanto Vale o Show? ou... 20 de Novembro 25 anos depois...

João de Carvalho
Racionais MC's: Edi Rock, Ice Blue, Mano Brown e KL Jay


O LANÇAMENTO

Nesta última terça feira, 18 de novembro de 2014, o grupo Racionais Mc's lançou o primeiro single do disco que está programado para sair no dia próximo dia 25. Se trata do rap "Quanto Vale o Show", que está disponível por 1,99 R$ na loja digital Google Play. Já no dia 19, a página oficial do grupo no facebook (conexão do grupo com mais de 5,5 milhões de seguidores) lançou o teaser do disco. Estes dois lançamentos, que somados ao dia da consciência negra, antecedem o último show da turnê - 21 em Uberlândia - em que se celebrou os 25 anos do grupo de rap mais influente e duradouro do país. Tal turnê fecha o ciclo simbólico que ainda prende o Racionais ao passado, mas antes mesmo que o sangue esfrie, o novo e aguardado disco sai na próxima terça (hoje) para lojas virtuais, e tem lançamento com show previsto para o dia 25 de dezembro, no Espaço da Américas (o mesmo em que ocorreu o show registrado do DVD Criolo e Emicida Ao Vivo), por 120 R$ - a inteira na pista - na Ticket 360.

Tem ocorrido tanto som novo interessante ultimamente, e a velocidade dos lançamentos se sobrepõe de maneira tão frenética, que a coisa mais rara que existe é um som que te pegue por completo e te faça apertar o play repetidas vezes. Mas esse som lançado terça agora conseguiu fazer isso comigo. Na primeira tacada foram 4 vezes seguidas, mas agora já passou das 10... e ainda não escrevi o restante do texto, o que pressupõe aquele monte de escutas cheias de pausas... Enfim, esse som me lançou numa torrente de associações que ligam Mahammad Ali até a recente vitória do PT. 
Há, vc duvida? Achou graça? Parece teoria da conspiração? 
Dá o play e depois me segue...




MINHA ESCUTA

O primeiro elemento que me chamou a atenção foi o plano sonoro desta obra. Achei muito interessante a base criada por DJ Cia - do RZO - que traz como principais referências o tema do filme Rock, O Lutador, e a voz de Silvio Santos, num "refrão concreto", feito com o recorte e a colagem da voz do ícone midiático, sobreposto às vozes do Mano Brown...

O fato dessa base não ter sido feita pelo DJ do grupo, o grande KL Jay (espécie de 'grão-mestre' (existem vários) do hip-hop nacional, um sábio vegetariano na selva de pedra), é algo revelador. Essa canção é uma demostração de que Racionais é muito mais um clã do que simplesmente um grupo musical. Não seria mais óbvio pensar que a primeira a ser lançada deveria mostrar os 4 principais elementos do grupo? Mas no Racionais essa ideia de principal não cabe muito. Só de longe o Mano Brown é O líder, e Racionais é O grupo de rap do Brasil. O que é certo dizer é que os Racionais representam a maior e mais tradicional família dentro do hip-hop nacional. E a densidade poética dessa base composta por DJ Cia, outro pilar do movimento, é a prova de que a família vai bem...

DJ Cia e DJ KL Jay, num rango entre a mixagem do novo CD em Nova York

Bem, se você escutar com calma vai perceber que, diferente do que mais se tem feito por aí, a articulação das partes dessa obra é assimétrica (as estrofes não tem a mesma duração de versos e compassos). Isso é uma ousadia realizada em conjunto, tanto por Brown como por Cia. A sequencia inicial é composta pela voz de Brown, trocando uma ideia, um ritmo marcado no pandeiro e uma segunda voz fazendo uma espécie de sombra com o pandeiro, evocando o começo do interesse do rapper pela música. Uma segunda sequencia se inicia, a voz de Mano Brown, agora em um outro espaço acústico, com um rádio tocando ao fundo, assume um tom profético e diz sobre os desertos que atravessou. Nesse "rádio imaginário" (é uma interpretação, vc não precisa concordar com tudo o que digo) a canção Gonna Fly Now se anuncia e existe a sobreposição do texto de Brown com a letra da canção matriz ("it's so hard now/ trying hard now"), tudo isso somado às vozes de fundo do MC do Capão.



Parece que aquele clima de sequência fílmica em que o personagem evolui no tempo enquanto toca uma música que embala a ação impregna, de certa forma, a base composta por Cia. O DJ do RZO conseguiu inclusive criar um direcionamento apoteótico, em que parece que a canção explode juntamente com o último corte de cena do texto de Brown, que também respira esse ar retrospectiva e passagem do tempo, pois as estrofes cobre um período histórico que vai de 1983 à 1987. Em outras palavras, o rapper paulista compõe uma crônica de alguém que cresceu (dos 13 aos 17) em um país que acaba de sair de uma ditadura militar.

Neste relato não é contundente somente o plano narrativo, mas também a conjunção entre narratividade e qualidade poética. Por qualidade poética estou compreendendo aqui somente os 3 elementos destacados por Ezera Pound: melopéia, fanopéia e logopéia. No final da primeira estrofe escutamos, por exemplo, os versos "Meu primo resolve ter revolver/ em volta, outras revoltas, envolve-se fácil/ era guerra com a favela de baixo/ sem livro, nem lápis o Brasil em colapso", um belo exemplo de melopéia, em que podemos perceber como a rede de sonoridade das palavras aproximam e revelam significados. As palavras resolve, revolver, volta, revolta e envolve-se são variações de um mesmo tipo de sonoridade. Mas é ainda mais surpreendente a palavra "colapso", que aparece em um lugar onde se espera uma rima conclusiva, consoante. É como se a palavra "baixo" se abrisse entre "Brasil" - que ecoa o "fácil" -  e "colapso".

Mano Brown costuma reconhecer que é uma referência como MC muito mais por seu "conteúdo" do que por sua técnica. Podemos considerar que ele não é um grande improvisador, e que ele nem é propriamente um inventor dentro das divisões rítmicas e nos usos das vocalidades (Emicida, Sabotage e Sombra -respectivamente- são exemplos mais ousados nessas coisas). Mas o flow do Mano Brown está longe de ser fraco! E, se ele não é propriamente um inventor dentro desse quesito musical (técnico), ele é sim um grande mestre dessa arte. Vou fazer um paralelo comum e comparar o Brown ao Chico Buarque. A relação que o Mano Brown tem com a "técnica do MC" é mais ou menos a mesma que Chico Buarque tem para com a "técnica musical". Também me lembra o exemplo do Siba, em que apesar das invenções instrumentais aparecerem sempre em função do texto, essas adquirem, por rigor composicional, um elevado grau de elaboração musical. As guitarras do Siba, a harmonia do Chico e o flow do Brown são frutos de um rigor irmão!

E, ainda que tudo que eu tenha apontado até agora sejam, de uma forma ou de outra, virtudes musicais, e isso é o que no final justifica o show, o que os Racionais estão nos apresentando é uma perspectiva de compreensão da sociedade em que vivemos hoje, na reta final de 2014, em pleno dia da consciência negra! (escrevi a maior parte desse texto no dia 20...). Vejamos.

Ali vai à lona, contra Wepner, em 1975.


O personagem Rock Balboa foi criado por Sylvester Stallone (além de ator, Stallone escreveu todos os VI roteiros da série) inspirado, declaradamente, na luta entre Muhammed Ali e Chuck Wepner. O então desconhecido lutador conseguiu resistir 15 rounds, e levar Ali à lona! Muhammed havia, no ano anterior, conseguido o título mundial na aclamada luta contra Foreman, e era o grande favorito da noite. Stallone estava alí, no meio da multidão, quando Muhammed Ali caiu. Em 3 dias o roteiro estava pronto, e no ano seguinte o filme já estava sendo lançado.

O nome Rock faz referência à um outro boxeador branco, Rock Marciano, o grande campeão da década de 50. É, fazia quase 20 anos que Marciano estava afastado dos ringues, isso não importa. Também não importa que este então ambiente de supremacia afrodescendente - o boxe - seja um espaço de resistência e identificação de uma juventude negra. Não importa que Muhammed tenha desenvolvido a espetacular estratégia de cansar Foreman, na "luta do século", a mesma estratégia usada por Balboa contra Apollo. Muito menos que a estratégia padrão de Ali era prolongar a luta até o último assalto. Naquele dia, para o jovem Stallone, Muhammed não ter derrubado o novato logo no começo da luta deve ter parecido muito mais arrogância (como a do personagem Apollo) do que respeito pelo oponente (Ali ganhou a luta no último round).

Como não pensar que estamos diante de uma questão racial?
Até mesmo a música tema, Gonna Fly Now, é um Soul de branco!

Bill Conti, compositor de Gonna Fly Now, canção do Rock de 1976.

No boxe americano dos anos 70 e 80, que corresponde respectivamente ao contexto da base de Cia e da letra de Brown, os brancos normalmente são os juízes, treinadores, apostadores, platéia... mas a grande maioria dos lutadores são negros. E no final das contas, quem faz o show? Em que consiste o show? Quanto vale o show? E, quem ganha com o show?

Na primeira vez que a voz de Silvio Santos aparece perguntando "quanto vale?", Brown não completa a frase com a palavra 'show', e sim assim: "quanto vale o SOUL?".

Essa pergunta é oportuna pois aponta, além de muitas outras coisas, para soluções musicais, de caráter e de afeto pré-rap anos 1990. Caso vc ainda não saiba, o Racionais não está sem lançar disco a 12 anos pq são preguiçosos. Não, existe uma crise muito coerente que se pergunta sobre como está o mundo e o Brasil hoje, e como superar a visão de mundo que o rap dos anos 1990 criou? Pro Kamau e pro Rael é mais fácil, não fizeram a cabeça de tanta gente assim nos anos 90. Mas como se portar diante dessa questão um grupo como o Racionais? Vc chegou a escutar os lançamentos do Eduardo, ex-Facção Central? Ele lançou no Dia das Bruxas... bem, muito bom! Mas completamente anos 1990... acho esse paralelo curioso, inclusive, pelas artes dos discos... mesmo tipo de letra, mas perspectivas muito distante... as imagens traduzem bem isso... na capa do single dos Racionais temos uma máscara de palhaço no chão, ao lado de várias notas de 50 reais e uma pequena chave... a capa do disco do Eduardo tá aí:


Voltando ao lançamento da semana, a tensão entre realização, consumo e ostentação está registrada neste relato autobiográfico de um sobrevivente da Zona Sul, salvo graças ao Hip-hop. Aqui, seria conveniente voltarmos um pouco nossa atenção também para o teaser de divulgação do disco:


Num rápido mapeamento do que assistimos neste pouco mais de um minuto:
1. Os nomes Cosa Nostra e Boogie Naipe (marcas/empresas do Racionais) aparecem como apresentadores de não se sabe o que ainda... mas ao fundo escutamos o som de sirenes.
2. Vemos uma ação "criminosa", personagens disfarçados de garis, com metralhadoras e máscaras, inclusive de palhaço (o palhaço é um ícone associado, no rap, ao ladrão).
3. Um plano rápido da máscara sobre maços de notas de 100 reais.
4. Os integrantes do Racionais, felizes, contando e redistribuindo a grana, em um quarto de hotel. Estão bem vestidos e o quarto parece bem caro.
5. Brown, olhando pela janela, com touca de motoqueiro (tb de assaltante), seca o rosto como se descansasse de uma ação intensa.
6. Um carro chega à uma comunidade da periferia. No muro lateral a imagem de 2 Pac. Uma moto parece esperar, e guiar mais para dentro da periferia. Chegamos à inscrição 'Fundão - gansta' (outra marca dos Racionais) na camiseta de alguém. A cor laranja (que casualmente na yoga inspira força e resistência), presente nas roupas dos garis, agora toma conta de um grupo maior de 'manos'... os Racionais aparecem no meio.
7. Entram letras que anunciam o disco e o show no Espaço das Américas, esclarecendo o que os dois primeiros nomes vieram apresentar.

O que vemos aqui é um reforço das questões presentes na letra do lançamento do dia anterior, a canção nova "Quanto Vale o Show". A ostentação, mapeada como presente desde o início dos anos 1980, se atualiza. O significado do ladrão dentro do discurso do Racionais tem uma longa história, que não cabe aqui, e talvez você já conheça... passa por Hobin Hood e São Dimas. A ideia de família, clã, ao invés de grupo tb se faz presente neste teaser. Recentemente Mano Brown disse em entrevista à Cult que a revolução hoje tem a ver com montar uma empresa e conseguir manter várias pessoas empregadas, algo que pode parecer contrario à ideia de revolução, que costuma ser associada diretamente aos pensamentos de esquerda, anti-capitalista por excelência...

Este teaser, somando-se à obra lançada no dia 18, sinalizam a direção do que pode ser o "novo" disco e o "novo" Racionais. Diferente de Eduardo, que aponta e explicita a guerra civil que vivemos, os Racionais ampliam a leitura, colocando outros elementos em jogo. Mas o que o antigo MC do Facção Central está nos apontando existe. O genocídio da juventude negra e "favelada" ainda não teve seu fim. O metrô chegou ao Capão Redondo, a consciência do "ser negro" se aprofundou, os pobres já podem ter acesso à certos símbolos de consumo. O conhecimento também está mais democrático. Muita coisa mudou, mas a juventude negra continua morrendo.

Capa do disco Cores & Valores. (foto: Rui Mendes)

Vamos voltar à canção lançada semana passada?
Este texto já se demora em minha mesa faz uma semana,
e o Racionais liberaram agora a pouco o disco novo...
!!!! ...
clássico,
agora só digo isso.

Nos minutos finais de Quanto Vale o Show, podemos acompanhar Brown narrando:


"Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão
Dezembro sangrento SP, mundo cão promete
Nuvens e valas, chuvas de balas em 87
Quanto vale? Quanto vale o show?"


Na parte onde antes entraria a voz de Silvio Santos questionando quanto vale o show, aparece o corte abrupto entre a cena das vitrines e o corpo de um negro assassinado (Indigo Blue/ Corpo negro semi-nú). Quanto vale o show? 
1,99 R$ - sinônimo de loja popular - para o arquivo de áudio de cada faixa. ? .
9,99 R$ - arquivo de áudio do disco completo. ? .
120,00 R$ - a pista, no show de lançamento do dia 20 de dezembro, no Espaço das Américas. ? .
A vida - quanto de sangue e suor para armar a lona do circo? 
Quantos DG's em Esquenta's?

Juçara Marçal, novembro de 2014 (foto do facebook da cantora/compositora)

Se por um lado o surgimento e a história do Racionais estão vinculados de maneira quase direta ao PT, essa nova canção (e pelo que pude conferir tb o disco) consegue não ser refém do apoio circunstancial durante a última campanha eleitoral. O apoio que a Dilma teve de alguns militantes do hip-hop (que é um movimento apartidário) só veio mesmo no segundo turno. Demostração clara das reservas com que estes apoios se deram. Isso foi, de um modo geral, muito mais um não ao PSDB e ao Aécio do que propriamente um sim ao PT.

E se não fosse a articulação virtual, que questiona e contrabalanceia os abusos da imprensa oficial (não preciso lembrar o desespero da Veja "Eles Sabiam de Tudo"), muito provavelmente o PSDB teria conseguido retornar ao poder. E o hip-hop, com alguns articuladores formadores de opinião que se posicionaram, cumpriu um papel nesse processo. Mas uma coisa é apoiar um político como o Eduardo Suplicy, que media o discurso do Racionais em esferas onde o grupo e o movimento ainda são mal vistos. Discurso este que se questiona, compreende e clarifica ideias - já disse em outros textos que o MC é um professor - que envolvem preconceito e desigualdade racial. Outra coisa é apoiar incondicionalmente um partido que sofre tanto com essa tal "governabilidade" (Kátia Abreu no Ministério da Agricultura não dá, né?!). 

Cores & Valores reflete como está o lugar do negro das periferias hoje, colocando esta questão de maneira histórica, exercitando de modo radical o quinto elemento do hip-hop. O conhecimento e a auto-consciência, reflexão constante do "da onde eu vim?" e de "quais as regras do jogo?", são o compromisso mais fiel que os Racionais se engajam. Bandeiras de partidos e ideologias prontas definitivamente não explicam o Racionais, muito menos o hip-hop. Na década de 1990 os Racionais foram a voz mais forte do que acontecia nas periferias do país, pois seu discurso foi aceito (de maneira religiosa, diga-se) por uma verdadeira legião de fãs. A primeira década dos anos 2000 também teve um disco do Racionais para embalar a consciência do país. Agora, finalmente, depois de 12 anos, tá na praça o novo álbum. E assim como no começo, - o primeiro disco do Racionais chama-se "Raio X do Brasil" - os caras não miram baixo.