quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Nas Varandas da Vila

 João de Carvalho

Um tando de mim quer traçar esse texto como quem abraça amigos.
Tenho que ter em mente o que o Palmeirah me disse:
Mano, não dá pra dá um salve pra todo mundo... é muita gente, aí o programa não anda!
O certo é que este texto mais esquece do que lembra.



Ao me propor apresentar o projeto Conversa de Varanda, da Gisele Almeida,
fui mapeando uma espécie de rede de produção,
onde cada indivíduo contribui com um pouco na construção do significado
que o disco – no nosso caso – carregará.

E, ainda que eu diga tantos nomes, como direi, falta muita gente!

Será que esqueci, por exemplo, de ti?

Onde você entra nessa história? Como estas canções ecoam em você?
São respostas que merecem constar nesta postagem.
Espero que você me compreenda a falha.
E que ainda assim este texto possa te abraçar.

A Vila

Na segunda feira do dia 8 de setembro, subimos à pé, eu e o Waldir, até o Cemitério de Automóveis. Fomos ver e escutar o Bernardo Pellegrini cantar e contar suas histórias. Voltamos de carona, em carros separados, pra tomar uma aqui do lado, no Bar do Tomil. A mesa, por fim, se formou comigo, com o Maurício Arruda e a Jacqueline Sasano, o Waldir e a Raquel Palma, o Cândido e sua trupe de palhaços (Pepito, onipresença na noite londrinense) e o Carioca. Em outras palavras, era uma mesa de artistas. De encontro de gerações da produção cultural de Londrina.

O Cândido, músico e ator, mora com seu filho mais novo em São Paulo. Conheceu o Bernardo e o Maurício quando morou em Londrina na década de 1980. Nessa época isso aqui era um orgulho só! A cena cultural podia ostentar nomes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Isso falando só de canção, mas tem também a presença do teatro daqui, que talvez, inclusive, seja a característica mais marcante daquilo que se chamou vanguarda paulistana, na sua aceitação mais radical da vocalidade, cheia de máscaras e personas...



Em certo momento o Maurício comentou sobre uma frustração a respeito da atual movimentação cultural de nossa cidade. Respondi que, em 12 anos de Londrina, parece que escuto agora o vento mudar de direção. Bem papo de boteco, impressões subjetivas. Comentei que eu pirava no lance do portal que alguns – o Otto, por ex. – anunciavam como o 1111. Eu também vejo este número com frequência... piras, piras, eu sei... mas falei pro Maurício que eu acreditava que existia uma onda de pessoas/artistas, muito mais colaborativa. E disse que aqui, na Vila Brasil, eu encontrava as maiores inspirações para esta esperança.

Foi no livro do Maurício que eu li. Como epígrafe geral, Londrinenses traz uma citação de C. L. Srauss, quando este passou por aqui:

Mesmo que os planejadores de Londrina se mostrassem indiferentes aos espaços, estruturas mentais inconscientes se aproveitaram dessa indiferença para invadir o domínio vago e nela se exprimir de forma simbólica ou real, um pouco como as preocupações inconscientes se aproveitam do sono para se exprimir”


Busquei me indagar mais sobre esta vila.

O que faz tanta gente interessante, que enfrenta com bravura os abusos imobiliários e as insanidades do mercado de trabalho, tornar-se vizinhos?

Se eu parar de escrever agora, e sair pra ir na venda, aposto que encontro algum(a) maluc@, que também está se equilibrando entre um monte de contas e muitos, muitos sonhos. Um desses malucos que podem pintar a qualquer momento na minha frente é o Danilo Lagoeiro. E é no livro que ele escreveu com a Maria Fiorato, Impressões da Memória, que encontro um depoimento do Seu Zé Rodrigues, o sanfoneiro que mora ao lado do Espaço Cultural Vila Brasil, onde rola a capoeira e tal...

Serenata pras menina, pras moça? Ai fia de Deus, a coisa mais bonita, que mais as moça gostava! Vamo supor que eu tinha uma namorada, né? Se ela falava que o pai dela ia sair era melhor, mas geralmente sempre tava. Aí a gente ia, a gente já sabia o quarto que ela dormia, e a gente ia na rua quando tinha certeza que tava todo mundo dormindo, depois das dez, ia debaixo da janela dela, pegava e tocava a música bem baixinho, sabe? Bem sereno assim... Aí você via aquelas janela abrir que nem porta assim, ai que gostoso, meu Deus do Céu! Ai que gostoso... A gente não falava nem uma palavra, nem um nada.”

Aqui, desde antes, é uma vila de misturera de origens. Podemos dizer, sem maior ufanismo, que é um justo nome para o bairro. O tom geral dos acordes era a música caipira. O reinado da viola e do acordeom. O repertório típico de um ambiente praticamente rural. Os sonhos dos circos, as paixões das quermesses, canções nos lábios, nos dedos e no coração.

O projeto conversa de Varanda foi idealizado durante encontros neste bairro e, como não poderia deixar de ser, parece ecoar esta teia de sonhadores que compõe o inconsciente dessas casas de madeira.

Os Três Primeiros Papos



A Karen Debértolis é gente boníssima!!!

Uma articuladora fundamental para a cultura da cidade, capaz de ligar gerações distintas de criadores [Vinícius Lima e Rodrigo Garcia Lopes, Rodrigo Grota e Luiz Mioto]. Karen, sabia que eu dei seu álbum, o que você me presenteou, pro Palmeirah? Ele é seu leitor e admira muito o trabalho poético/musical que você desenvolve! (preciso de outro disco)

A Karen, além de poeta, é jornalista. E tem, tal como o mano Palmeirah, um programa de rádio. (tenho que me lembrar de apresentar a Janete El Haouli pra ele) E a Karen tem também um blog! Se você ainda não conhece, confira:

                  Blog Inéditos de Dispersos                     Contracapa, Radio Alma

E é ela, essa figura tão generosa, que promove o trabalho de tantos ao seu redor, e que em seu primeiro disco já nos alertou sobre a força do silêncio como arma, quem abre a série de web-vídeos do projeto Conversa de Varanda. Saca só a sapiência dessa mulher das palavras, acostumada a dialogar com tanta gente:

quantos falsos
palavras de pilhéria
suspiros de lado com palavras disparate
quantos falsos
adorações adocicadas
protestos ma non tropo
frases desastres
quantos falsos
que gritam corretas atitudes
que mastigam sua própria arrogância
e cospem uma fragilidade fake
quantos falsos
parecendo vidros transparentes
com rótulos de instruções serenas
que espreitam pela queda
o deslise
o tropeço
quantos falsos
e vão estender a mão
a outra escondida em figas
o sorriso do gato de Alice
do alto do mais nobre falsete”



Bem, o Fuca, que mora uma quadra à esquerda, com a Gisele, é o músico que compreende o que a Karen deseja e propõe para o restante da banda. E pelo fato da Karen estar sempre aqui por perto, gravando e editando os programas ali na Vila Cultural Alma Brasil, ou se reunindo para ensaiar com o Fuca, e por ela admirar o talento da Gisele, é que surgiu “Insuspeito”. Canção composta por Rafael Fuca, sobre texto de Karen Debértolis, é uma bela balada pensada pra voz da Gisele Almeida. Representa muito da musicalidade da Gisele, cantora de blues e jazz em vários projetos aqui nessa terra vermelha. (Ela também veio do interior de SP).



O segundo papo foi comigo. É, eu fui um dos compositores convidados para estas Conversas de Varanda. Orgulho pra mais de metro. É sempre um prazer poder tocar com o Fuca, e é uma alegria sem igual ter “minhas” palavras e melodias na boca da Gisele. E, além disso tudo, poder ser registrado, em som e imagem, pelo Felipe e pelo Nilo, da Filmes do Leste, empresa que também é vizinha aqui {uma quadra pre esquerda e duas pra cima}, putz, aí fica até difícil de dizer alguma coisa... pra mim esse vídeo é um papo entre 5 pessoas, pois os dois câmeras são personagens ativos, tanto na escolha dos ângulos, o quê mostrar?, como depois na edição que ficou sob a responsabilidade do Nilo, e a arte nas mão do Felipe... eu consigo escutar alguns pensamentos deles... a escolha do Nilo em montar a minha fala toda entrecortada, e frisar com close quando digo que me formei professor, isso é ele compreendendo as canções, me escutando, e expressando o que vê e pensa... e o cabelo da Gisele harmonizado com os contornos das janelas e com os tipos das letras do projeto inteiro? Isso é o Felipe soando! Não é um outro artista, é o próprio camarada que operou a câmera, e que estava fazendo o rolê porque botava fé na ideia (até a gravação deste programa, que foi antes da Copa, o projeto era completamente “independente”)... tá dito aí:



A Gisele vai cantar no seu disco minha versão do Gayatri Mantra, que batizei de Um Gayatri. Isso é muito legal, pois esse trabalho de transcriações compõe uma parte considerável do meu repertório “autoral”, e essa versão em específico liga meu caminho com o da Gisele de uma maneira muito especial, pois envolve nossa pouco definível espiritualidade. Uma informação que complementa bem este quadro é que ela é minha terapeuta floral, além de me ajudar com seções de Reiki! A palavra é só uma, gratidão!

som chão vento subirá
até o sol supremo raiou
e que também aqui
brilhando está nosso caminho”


O terceiro papo foi com o Fischer Seixas. [Esse mora duas quadras à direita, e somos amigos “estrangeiros” nessa cidade desde nossa graduação – +- 2002 – , eu em música e ele em psicologia]... E essa conversa foi tão importante de ter acontecido! Pq esse nosso amigo aí andou muito tempo recluso em seu mundo. Equilibrava-se entre os ofícios de psicólogo e carteiro – isso é literal, dos Correios mesmo. Agora largou tudo e está em casa trabalhando em seu blog e suas canções. Esse vídeo, essa possibilidade de existir enquanto cultura, são quase cartas em garrafas, pergaminho na pata de um pombo correio, informando aos parentes e amigos distantes que tá tudo certo. Tamo seguindo, conseguindo existir e resistir no loko rolê do mundo!

Na paisagem citadina
Cada esquina revelou
A mais bela pradaria
Infinita toda em flor
Se da flor fruto não vira
Pague a prenda, meu Senhor

Ai, meu Pai, meu Pai do céu
A loucura me atacou
Foi um mal inesperado
De tão forte que afrontou
Revirando a certeza
Quase nada me deixou
Ela veio de veneta
Disparando o seu humor
Foi cuspindo na visita
Arrotando a minha dor

A loucura é arredia
Ela já se amotinou
Declarando a rebeldia
Degolando o desertor
Sorrateira faz o caos
E a porteira arrebentou
E de fora vem pra dentro
Enxotando quem ficou
Nem pai nosso, ave maria
Nem vergonha nem pudor
A sangria é desatada
Com remendo supurou

Se ela fez o que bem quis
Teve tudo a seu dispor...
Vai girar num torvelinho
A ressaca enfim chegou
Vai deixar outro caminho
Pro caminho acontecer
A verdade que foi dita
Não dá mais pra desfazer
A loucura ficou mansa
Desgrenhada, acalmou
Foi dormir feito criança
Esquecendo a sua dor”

Esse vídeo do Fischer podemos dividir em 3 partes. A primeira a e última sequências constituem-se das duas canções apresentadas integralmente, A Loucura me Atacou e Dois. Na seção central, que rola a entrevista e a canção que o Fischer fez com seu avô, homenagem ao Paysandu - azul e branco na camiseta e no blog-, podemos perceber a paisagem sonora daqui do bairro: cigarras entremeadas pelas varreduras sonoras dos carros e dos aviões. Se vc-s repararem, nessa seção do meio temos duas sequências, com dois assuntos distintos. O primeiro conta dessa distância que o Fischer tem de sua terra, e é muito sugestivo a violência ser pontuada pela aproximação de um carro, e no momento em que ele fala do Marajó só escutamos cigarras, em uma cena acústica típica do interior do país. No segundo momento, que começa com a recordação de uma canção do Raul, temos um recorte de uma fala bem característica do Fischer, e ele comenta sobre sua relação com o ato de compor. E assim como no primeiro momento o carro gera um ponto de tensão na fala, que logo se desanuvia, o mesmo acontece neste segundo fluxo, mas agora com o som de um avião. Depois que o som passa o Fischer vem relaxando, e se diz "voltando, voltando, voltando"...





A canção que a Gisele escolheu pra cantar do Fischer foi Queixa de Sinhá. O vídeo, que foi o último lançamento do projeto, apresenta uma linda interpretação da canção do Fischer com o violão do Fuca e a voz da Gisele. Uma canção ambígua, com uma escrava quase que se enfastiando com o lamento dos desencontros amorosos de Sinhá. Parece que a família do Sinhô está tendo problemas com escravos e com contas na praça, a escrava talvez até receie sobre o futuro do outro escravo. O Fischer é um admirador do Chico Buarque, e é curioso que essa composição dele - se não me falha a memória - é anterior à Sinhá, do Chico e do João Bosco. A atmosfera das duas canções até dividem similiridades... Se por um lado a canção do mestre trata sobre as artimanhas retóricas que o escravo tem que se valer para se defender das acusações da Sinhá, a canção do meu amigo versa sobre o equilíbrio que o escravo que fica ao lado da senhora tem que ter. A ambiguidade é uma arma mais do que necessária. Bem, sabemos que essas relações não se extinguiram por completo da nossa sociedade, e uma crônica de época, como é o caso dessas duas canções, tratam muito mais de comportamentos arquetípicos do que propriamente de uma cena bucólica de um imaginário saudosista ou anacrônico. E a Gisele se porta muito bem com este texto, mantendo sua natureza ambígua e não entregando de mão beijada quem é quem neste diálogo. 


Pra onde o vento sopra?

O projeto Conversa de Varanda apresentará, até dezembro, dez compositores londrinenses, residentes e atuantes na cidade. O único caso que quase contraria isso é o do Miguel Arruda. Outro mano de uma cara, é filho da Thaís (transcriei o mantra pra cantar com ela), e como a mãe, é um nômade, filho do mundo. Mas sempre volta pra cá...



Entre os sete compositores – alguns eu não conheço! – que ainda estão por vir, temos em uma ponta o veterano Bernardo Pellegrini – vocês devem se lembrar que começamos indo para um show dele – e na outra ponta, a estreante, inspiradíssima, Carolina Sanches {Maracatú Semente de Angola, Pisada da Jurema e Caburé Canela}. Tecnologia de ponta!



Nestes dois últimos sábados, inclusive, estive em lugares muito especiais que a Carol também estava, e nestas duas oportunidades ela cantou a canção que a Gi escolheu para gravar. É uma canção que convence todo mundo a cantar junto, mas não em coro, e sim colocando cada um na ação de encontrar um lugar para sua própria voz... e, quem estava presente deve se lembrar, começa com uma cena parecida com a relatada pelo Seu Zé!

Ah, Jung,

parece que o Sr. Strauss era realmente um cara de intuição!

E, eu não disse que o que dava o tom pro aqui eram as sanfonas e as violas?

Mas tinha mais coisa...

Acontece que na rua Venezuela, praticamente ao lado das sanfonas do Seu Zé, tem uma espécie centro budista... O Maurício me contou de um mestre Zen que dava aula de japonês ali. Hai-caísta reconhecido e premiado nacionalmente. Certa vez eu estava passeando com os meninos e paramos para escutar a música que vinha daquele salão... uma canção linda, pentatônica, com aqueles arranjos de orquestras típicos japoneses.

(entre o templo e o Seu Zé os meninos curtem, aos sábados à noite, o som da capoeira)

Bem,
se a Vila conspira,
e esse projeto é vontade dela,
falta falar de quem?
Uma dica:
viola + zen
é
tô pensando
no André!



Se por um lado temos o Fuca como braço direito da Gi, fazendo a ponte entre os compositores e os instrumentistas, temos o André Siqueira na função de instrumentista/arranjador/produtor. O André é um mult-instrumentista, mas mais do que isso, pra mim, ele é um “violeiro expandido”. Não um cantador, e sim um caboclo que de repente encontra a paz no som, no correr dos dedos em um instrumento. O André é um grande artesão, como parece ser a regra para qualquer um que aspire a paz interior. Fiquei muito feliz ao imaginar o André, com sua vasta experiência com improvisação e com sua intimidade com a obra de Giacinto Scelci, emprestando sua musicalidade para a canção que eu transcriei.

Se você ainda não conhece o trabalho desse fera, confere aí: link.

E fiquei muito feliz também quando o Bruno Gehring me disse que quem vai fazer a pós-produção do disco é o Marcelo Cabral. Manja ele? Integrante do Passo Torto! Baixista e produtor do Criolo. Foi o cara que “bancou” o Nó na Orelha. Produtor do Fantástico Mundo Popular do Sombra!!!! Esse cara, de forma indireta, é um dos responsáveis por me fazer perceber e compreender o que está acontecendo, e, consequentemente, nesta minha narrativa ecoa seu trabalho...

Faz mais ou menos um mês que eu apresentei um trabalho, no Simpósio de Comunicação Popular e Comunitária, intitulado “Duas de Cinco, do single ao curta: a rede de produção do hip-hop paulista em tempos de youtube”. Neste trabalho busquei revelar que o curta Duas de Cinco é fruto de uma produção horizontal, onde muitos agentes contribuem de vária formas para o significado da obra. Quando o curta foi lançado, on-line e com bate papo com o Criolo e o Cisma, me lembro de ter pensado: Puxa! Esses caras estão coroando um novo paradigma de produção de canção no Brasil. Áudio-visual. Uma produção rizomática. Independente. Desmonetarizado, que foi um termo que aprendi no simpósio com o rapaz do Mídia Ninja, mas capaz de captar recursos de várias fontes.



 Ter o Marcelo Cabral para dar a “última demão” nas canções do disco da minha vizinha Gisele Almeida, é algo que reforça a minha fé de que a vida, e a Vila, sabe o que faz. Muito mais do que “emplacar”, o CD que está previsto para sair em dezembro será um passo importante para superarmos essas “cordilheiras sob o asfalto” que nos distanciam. Né, mano Palmeirah?!