sábado, 18 de janeiro de 2014

A Rua é Ruído: Rashid e Emicida em "Confundindo Sábios"


por João de Carvalho

Um bom ano para todos e, finalmente, a primeira postagem de 2014!
Vamos direto ao argumento central, que o ano já tá a milhão:
Rashid sai em turne de sua última mixtape.
Mixtape esta que foi batizada com o nome do rap que fez em parceria com Emicida.


No post passado [Nocivo Shomon: na polifonia da revolução] eu apresentei a ideia, que desenvolverei com mais profundidade na minha pesquisa de mestrado, da polifonia no hip-hop. Apontei, naquele texto, como o contracanto realizado pelo Nocivo Shomon é importante para a boa saúde do movimento, que tem na linha de frente de uma nova geração de MC's a figura de Emicida. Este conflito – que, como apontei, chega até a lembrar a famosa “Polêmica” de Wilson Batista e Noel Rosa – pode ser representado nas ideologias que separam os que acreditam que “A rua é nóiz” e aqueles que questionam “A rua é quem?”.

Que tal aproveitarmos essa desculpa do show do Rashid no SESC Belenzinho – a ideia original era fazer este texto como apresentação do referido show, mas não deu tempo :( – para escutar um som com atenção?




Confundindo Sábios – Rashid, Coyote, DJ Mrs Brown e Emicida

(aê, pra quem desacreditou, tamo de volta
- hahahahahahaha – a rua é nóis 
Zona Norte, Jardim Fontalis, Lauzane, Cachoeira, Vila Zilda...)

Então segura que é Rap nacional! Sai da frente que isso é Rap nacional!

Pele preta, tarja preta, na sarjeta da história
Beretas a mão, sem brasão, sem memória
Sem milhão, só porão, só grilhão, óh escória
Favelas, hard core, nas telas, Val Marchiori

Olhe, esse jornais, a 2 mil anos atrás
Gritaram: solta Barrabás
Tornaram crime, nosso Deus, nosso Jazz
De notas livres, cê sabe o que isso faz

Foi repressão sobre repressão, sobra a depressão
Sobe a inflação, cabe ao são, inflamar a nação
Informar a ação que monetiza a fé
Porongos foi Canudos, foi Carandiru, foi Racionais na Sé

Sou Clementina, Skelé, Palestina, axé
Na esquina um Zé e... Pantera Negra Tupi
Não pra TV (não), pro CV (jão), mil grau
Tipo Lampião (então) banditismo social

Isso é um campo minado, morô?
Tem que ser loko pra seguir de pé
Se quiser arriscar, demorô
ta no seu nome ladrão, vai na fé
O barato ta doido e tem mais
Ninguém confia em ninguém
Querem tornar sua mente alcatraz
Ou febem
(descreditar … ã, ã! ...)

Relaxa, o discurso acha, rumo nas caixa
É Gaza a faixa, onde balas não são de borracha
Vidas em baixa, avenidas em marcha, é
Tua causa encaixa, mas não vê mortos da maré

Tem cor de graxa o desprezo por quem vive à
Mercê das praxe a la presos na Bolívia
Refém das taxa, vacina é tua, livre-a
'Té crença racha, se fecha junto a Bíblia

(AH!) Dor do canto embala, banto, senzala
Sem pala, tanto que fala, pra ala
O cântico estrala, a luta de João Cândido exala
Liberdade, ao contrário no que o povo inala

(AH!) Nota agora, sequela, não gela
O nó na goela, revela
Tua rota mata, a nossa salva, sem cela
De um mundo que semeia Beira-mar pra colher Dráuzio Varela

Isso é um campo minado, morô
Tem que ser loko pra seguir de pé
Se quiser arriscar demorô
ta no seu nome ladrão, vai na fé
O barato ta doido e tem mais
Ninguém confia em ninguém
Querem tornar sua mente alcatraz
Ou febem
(descreditar … ã, ã! …)

Então segura que é Rap nacional
Sai da frente que isso é Rap nacional!”

E não é por acaso que o sample que o DJ Mr Brown utiliza para fazer seus scrats é um fragmento com a voz de Mano Brown, extraído de Vida Loka I, a mesma canção que parece conter o estopim que dinamitou a rigidez da quadratura do rap 

Rashid, tal como Emicida, teve seu nome projetado dentro da cena do hip-hop por seu bom desempenho nas batalhas de MC's. É um dos poucos que possui o Galo de Ouro (título dado somente aos MC's que várias batalhas seguidas na Rinha dos MC's – coordenada pelo DJ Dandan e Criolo). Em 2010 o jovem MC lançou o EP “Hora de Acordar”, que abriu o caminho para as mixtapes “Dádiva e Dívida”, “Que Assim Seja” e “Confundindo Sábios”, respectivamente em 2011, 2012 e 2013. De sua última mixtape é que extraímos o exemplo que escutamos alí em cima, e que dá nome à nova tur que estreiou no SESC Belenzinho nesta quinta.

O nome do disco, e a inspiração para o rap homônimo, vem de uma passagem que Rashid se lembra de ter ouvido quando criança durante uma missa. Sobre a parceria, Rashid fala à Revista Fórum: “Fizemos essa música realmente juntos, cada rima, e entramos no estúdio com o objetivo de confundir quem estiver ouvindo, já que não existe uma parte de cada um na música, rimamos juntos o que acreditamos e o que observamos com a força que o rap nos dá”.

A letra, como eu a articulei em estrofes alí em cima, tem a mesma estrutura de vários rap's que se fazem hoje. O “Duas de Cinco” do Criolo, que eu já comentei por aqui, é um bom por exemplo. Percebam que as 3 primeiras estrofes destes dois raps repetem o beat na tonalidade da música, e a 4ª estrofe aparece como a modulação que cadencia o final da primeira parte do rap. Isso se dá da mesma maneira nas duas seções. Cada estrofe é formada por dois dísticos, ou seja, é uma quadra, o que coincide com a quadratura (ciclo de 4 compassos) musical. Dentro desta quadra a rima pode continuar a mesma (a, a, a, a) ou variar em (a, a, b, b). Existem raps que são mais “quadrados” e a rima acontece basicamente só no final destes dísticos, mas uma das vertentes que mais tem ganhado destaque é a que explora de maneira estratégica as rimas internas (mesmo os que exploram um flow mais pesado – quadrado – costumam se utilizar também da flexibilidade ritmica que as rimas internas proporcionam, porém de maneira mais moderada).

Pele preta, tarja preta, na sarjeta da história
Beretas a mão, sem brasão, sem memória
Sem milhão, só pórão, só grilhão, óh escória
Favelas, hard core, nas telas, Val Marchiori...

Se imaginarmos a letra inteira colorida, podemos ter uma dimensão dos complexos jogos de rima que aparecem nesta obra (o que não é exclusividade só dete som!). O estilo do Emicida e do Rashid desenvolvem muitas das inovações de flow que tornou o Mano Brown uma referência tão importante. E não é por acaso que o sample que o DJ Mr Brown utiliza para fazer seus scrats é um fragmento com a voz de Mano Brown, extraído de Vida Loka I, a mesma canção que parece conter o estopim que dinamitou a rigidez da quadratura do rap por aqui: “tocou a campainha, plim, pra tramá meu fim, dois maluco armado sim, um isqueiro e um estopim”.

A musicalidade destes novos MC's é, provavelmente, o conteúdo mais contundente de suas obras.

Bem, como se não bastasse essa complexidade de sonoridade, o canto é dividido de modo a confundir a escuta e não conseguirmos identificar exatamente quem canta o quê. Isso é um aspécto ainda pouco explorado no universo do rap, onde as parcerias entre os MC's costumam ser divididas de maneira mais clara, onde fica inclusive marcado as diferentes perspectivas de cada um sobre um mesmo tema. Aqui não ocorre isso. As vozes se misturam como se fossem um único MC.

_Tá, você falou do flow, mas e o conteúdo, Jão!?
_Calma, já chego lá.

Não considero forma e conteúdo duas instâncias separadas. A musicalidade destes novos MC's é, provavelmente, o conteúdo mais contundente de suas obras. É chover no molhado – principalmente depois do texto do Walter Garcia “Ouvindo Racionais” – dizer que a força que o discurso do Mano Brown possui se dá justamente por um equilíbrio fabuloso entre “o que está sendo dito” e o “como está sendo dito”. Então, só para clarear mais um detalhe sobre a musicalidade que envolve o trabalho do MC (por que, é claro, tudo também depende do DJ e do Beatmaker – que podem ser a mesma pessoa ou não), é importante perceber o tamanho dos versos. A irregularidade das métricas é outro fator de diversidade musical. Se temos um verso curto, por exemplo, é muito possível que tenhamos um tempo forte vazio, e se temos um verso longo, é bem possível que o caráter mais passional (emotivo) seja evocado por conta da respiração que exige um fôlego maior e tende também a agrupar o verso seguinte. Resumindo, a flexibilidade rítmica é um dos fatores que compõe isto que se chama de flow.

Certo, isso tudo não é invenção de uma só pessoa, e por mais que o trabalho dos Racionais seja um monumento sobre o qual devemos nos debruçar para entender esta arte que toma conta das ruas, e compreender as próprias ruas, estas técnicas e dicções são muito difíceis de se rastrear a origem. O fato é que para a geração do Rashid e do Emicida (que é um pouco mais velho) o trabalho dos Racionais é quase uma cartilha que os MC's tem que cumprir e respeitar. E nessa cartilha existem lições sobre música e sobre sociedade. E é daí que a perspectiva do tema de “Confundindo Sábios” tira seu substrato mais básico.

Então, qual o conteúdo extra-musical, ou melhor, qual o conteúdo social que “Confundindo os Sábios” traz? Bem, o hip hop como um todo baseia-se na proposta de dar voz à realidade da periferia. Ou, em outras palavras, o hip-hop se propõe elaborar um discurso que retrate a situação do excluído, daquele que não tem lugar ao sol no projeto urbano das grandes cidades. Do negro, essa cor tão mutável na sociedade brasileira. Nesse sentido, versar sobre a exclusão racial e social que divide o país é o assunto central de 90% dos raps que se engajam no hip-hop. Com nosso exemplo – à despeito da crítica rasa que ataca este novos MC's como “rap modinha” – acontece o mesmo.

A perspectiva do “banditismo social” que a letra se refere é um mote recorrente dentro dessa conjuntura que apontamos. Desde, pelo menos, Dimas – figura evocada por Mano Brown como o primeiro Vida Loka da história – aquele crucificado ao lado de Jesus, que se tornou santo católico depois de sua redenção. Ficar esmiuçando todas as referências históricas que a letra faz menção não é tão frutífero neste momento. Mas é importante lembrar que ao pronunciar nomes como João Cândido ou Barrabás, por exemplo, os autores instigam seu público – em sua maioria jovens – a buscar informações sobre estes personagens históricos, o que funciona como uma importante estratégia de educação social – tanto para a periferia quanto para a classe média que se orienta à esquerda.

Neste ponto o rap nacional é completamente explícito em sua proposta: ao jovem da periferia resta a guerrilha, que pode ser no crime ou no hip-hop. “O nó na goela, revela/ tua rota mata, a nossa salva, sem cela”. Assim, não há exagero algum ao dizer que o rap salva vidas, tanto em sua atuação mais de base (com figuras como o Nocivo Shomom, por exemplo) quanto na atuação com um público mais amplo (como é o caso do Rashid e do Emicida). 


Não é pouca coisa o fato do Mano Brown participar do DVD Criolo e Emicida Ao Vivo (que teve a direção da Paula Lavigne, só pra frisar). Neste encontro de gerações e perspectivas do hip-hop o Brown aparece com um boné que, ano passado passou pela cabeça de Spike Lee, por exemplo, escrito “A rua é Nóiz”.

O ruído pode ser pensado como aquele evento que acontece fora de um círculo de convenções tidas como corretas. Italianos, por exemplo, tendem a falar mais alto que japoneses, mas são brancos. Sabem que em um templo de compras não devem entrar em bando cantando suas canções de festa. Afinal, um templo não é lugar de dança que mexa com o hemisfério sul do corpo. Quando alguns negros entram em bando nesse templo cantando essas músicas dadas às partes de baixo, provocam um ruído. Ruído se diz “noise” em inglês. E por ter uma natureza de encruzilhada, de campo de batalha, de espaço compartilhado, é que a rua é noise.