quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Reviver a Chama Viola


 
João de Carvalho

(o texto que se segue já é um pouco antigo - começo do ano passado -
faz parte de uma pequena coletânea chamada 
"3 ensaios poéticos e porosos"
que fiz como apoio às aulas da primeira turma do curso sobre canção)

Acabo de assistir ao documentário
"Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje".
(dirigido por Izabel Jaguaribe
com roteiro de Zuenir Ventura):


Logo na primeira sequência de imagens
antes ainda dos primeiros créditos e nome do filme –
Paulinho viola
a fronteira entre o passado e o presente
quando declama:
Chama que o samba semeia
a luz de sua chama
a paixão vertendo ondas
velhos mantras de Aruanda.

Chama por Cartola
chama por Candeia
chama Paulo da Portela, chama
(…) e outros irmãos de samba”

A chama é o fogo ainda vivo
é calor e movimento.
A chama de uma vela acende uma oração
dá vida a uma prece.
Como em um templo antigo
muitas velas clareiam a sala do samba.

E Paulinho chama
meio náufrago no passeio público,
para que possamos nos reunir
a qualquer hora do dia,
nesta irmandade de bambas.

Mas que raciocínio claro tem esse Seu Paulinho!

A consequência de reviver o passado,
de violar as fronteiras óbvias do tempo,
só poderia mesmo ser a extinção da saudade.
E é isto mesmo que o compositor começa
(e meça e remeça e arremessa)
explicando ao seu amigo livreiro
na primeira cena do documentário.

Um homem que chama o passado para o presente,
mantém a chama acesa,
não pode mesmo sentir saudade.

Paulinho empunha seu violão,
e canta e toca
como quem reza uma oração.
E é assim que ele canta
e decanta o samba de Wilson Batista;
cada palavra com seu sentido especial.


Mas ainda mais especial
é o verso que diz
meu mundo é hoje”.

É como se a canção
funcionasse feito
um oráculo,
de onde de repente salta um verso
que o faz pensar
sobre algumas relações subjetivas e pessoais
que resguardavam-se quietas e sem forma
no interior
da alma.

Porém
quando o samba do sambista diz
meu mundo é hoje”,
de fato
não está querendo nada mais
do que caracterizar um personagem que,
não dando valor ao “prezo” da hipocrisia
(e não é preço e nem peso;
o que Paulinho canta no filme
- diferente de sua própria gravação
e da composição original d Wilson Batista -
é prezo!),
vive o presente,
sem se preocupar com o futuro.

Agora,
este mesmo verso
cantado pela figura de Paulinho da Viola,
vindo logo depois
de seu “Chamamento”
e da conversa com o livreiro,
significa muito mais
do que isto.

... é comum quem toma apenas um verso de uma canção,
mesmo que este significasse algo completamente diferente
em seu contexto original,
e o utiliza como um amuleto
capaz de encerrar em si
e traduzir uma gama enorme de ideias e sensações.

E o que acontece aqui
é parecido com o que ocorre com Pierre Menard
ao reescrever
de maneira idêntica
o Quixote em uma das “Ficções”.

E não era mesmo o Borges
q falava q
os artistas
inventam
seus precursores?

Aí!
O Borges disse isto em outra circunstância,
mas o que eu penso agora,
adulterando-o à la Menard,
é que este processo de rever o passado
é muito mais cotidiano do que se parece.
Aliás,
tem ainda aquele poema
do Augusto de Campos,
o “rever”,
que à maneira de Ezra Pound,
make it new”,
parece tratar de questão semelhante.
Considerando isto,
creio que se
o Paulinho fosse de Campos,
ele faria o poema:
reviver”.

E ...
é justamente da parodia do verso em questão,
de Wilson Batista,
qe Paulinho Batiza
seu documentário.

... quando o filme começa o samba entoa:
Eu sou assim
Meu mundo é hoje
não existe amanhã pra mim”.

... ao final do filme Paulinho recria:
Meu tempo é hoje
eu não vivo no passado
o passado vive em mim”.

E isto não é
por pouco o
poema q eu
ali li ?


(poema Reviver, João de Carvalho, 2012)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O mal estar dos rumos


 
João de Carvalho
En el siglo diecinueve, con la invención de las máquinas, nació el Ruido.” Luigi Russolo



Faz algum tempo que digo aos meus alunos que o cerne das experimentações musicais mais recentes, no âmbito da canção, não estão mais focadas no desenvolvimento melódico-harmônico (e poético), que foi o principal motor da MPB. Ao contrário, para muitos dos recentes casos, este desenvolvimento teria regredido em prol de um conceito mais amplo de sonoridade.

Os mais novos expoentes da canção não são grandes músicos quando, o que focamos em nossa escuta, são os desenvolvimentos harmônicos. Porém, quando expandimos nossa concepção do que é música para aspectos relacionados à sonoridade, podemos notar como estes artistas são extremamente musicais e sensíveis.

Mas existe uma diferença fundamental entre os músicos atuais (incluindo os nomes antigos, mas que ainda estão na ativa) e os da década de 1970. A distância entre o cancionista e o homem que cuida da parte técnica de captação, registro e edição do som, encurtou. Antes, um cancionista procurava um grupo de músicos para dar vida à sua obra, hoje um cancionista pode mais facilmente procurar alguém que domine as técnicas de produção fonográficas.

Bem, por aqui parece que isso ainda precisa ser dito, mas eu estava somente dando luz à roda, chovendo no molhado. Explico. Meu amigo virtual, Roberto della Santa, grande apresentador de gentes, me colocou em dia sobre o debate que ocorreu envolvendo o cancionista Rômulo Froes e suas declarações sobre uma “nova geração” de cancionistas. Debate já antiguinho (do começo do ano passado), mas que ainda vem ecoando.

As declarações de Rômulo são muito parecidas com as minhas, porém penso em não cair em algumas armadilhas que ele infelizmente se enrroscou. (texto do rômulo) (debate com o walter garcia)

A primeira coisa que gera um constrangimento nas declarações do cancionista/crítico é a insistência na ideia de uma “nova geração”, que ao meu ver não existe enquanto unidade. Rômulo afirma que todo músico tem um computador para produzir, e que quem não tem, simplesmente não produz música hoje em dia. Ora, então será mesmo que o Criolo, por exemplo, só passou a produzir música agora que ele estreitou seus laços com quem pode gravar? Obviamente só mesmo uma visão muito pragmática e pessoal poderia desmerecer a existência daquelas canções em seus anos de interpessoalidade não mediada por um suporte tecnológico. Não creio que o autor do texto em questão concorde com essa ideia, mas essa ideia permeia seu raciocínio.

A segunda coisa se refere ao próprio louro da “nova geração”: o timbre. (Isso gerou inclusive vários comentários contrários). Por diversas vezes Rômulo se utilizou deste termo para qualificar os trabalhos de seus pares. Creio que existe mais uma confusão aqui. Utilizo a palavra sonoridade, de maneira expandida, onde timbre e textura formam uma unidade. Certamente a busca poética de timbres é algo que os trabalhos mais recentes costumam se esmerar, porém isso não difere estas obras das produções de outras épocas. O esmero do timbre é algo que está presente em qualquer trabalho refinado, de qualquer época e de qualquer estilo.

Mas existe um algo a mais na sonoridade dos trabalhos mais recentes. Estes parecem ter problematizado com mais ênfase a incorporação de texturas pontilistas, com silêncios e vazios expressivos. Além disso, compõe essa sonoridade geral, a maior intimidade de ruídos como matéria poética, fragmentação do discursso. Sem dúvida o manuseio de computadores e programas de edição facilita muito esse tipo de processo.

Eu poderia dizer, em uma metáfora provocante, que a canção hoje é mais plástica do que antigamente. Vale toda a ambiguidade da expressão, mas quero focar no aspecto pictórico da formulação. Se formos desenhar o que acontece com os sons de uma canção mais nova e de uma mais antiga, provavelmente chegaremos a desenhos bem mais interessantes com o primeiro caso. É muito fácil imaginar que essa percepção seja amplificada pela proximidade que o aparato tecnológico nos coloca de um processo pictórico. Na edição de uma música se recorta, cola, inverte, amplia, diminui, sobrepõe, fade-out, fade-in, cross-fade, fora a própria visualisação das ondas.

Mas dizer isso seria negligenciar o fato de que tudo isso também se desenvolveu, e bem antes, nas pautas tradicionais e nas experimentações de Tom Zé.

Se vamos debater sejamos menos superficiais e mercadológicos e peguemos também os experimentos do Arthur Campela e do Chico Melo, poxa, por que não?



Só porque o áudio e o vídeo não tem a qualidade mínima para entrar em um mercado vamos negar o papel dessa fatia da produção cancional?



O que é canção erudita e popular? Acho que o rótulo “canção de consumo” tem que ser um aviso de que relações comercias rondam a experiência poética, mas jamais atuar como reguladora da experimentação.

Voltando um pouco, ainda tenho que dizer um pouco sobre a utilização do ruído, sobre a fragmentação do discursso, e sobre a querela com o Luiz Cláudio Ramos.

Hoje estive na TOCA com a Janete El Haouli, e ela me disse que faria um evento em celebração ao centenário da publicação de L'Arte dei Rumori (A arte do ruído), do Luigi Russolo, o primeiro marco da valorização do ruído (e discussão sobre o que é o ruído) como material musical. Bem, talvez de fato os arranjadores da canção popular brasileira sejam um tanto quanto conservadores, e ainda se esmeirem muito na condução de vozes. Mas, sejamos francos, o quanto de ruído as novas produções comportam? Será que os ouvidos dos jovens compositores/produtores estão tão livres e limpos assim? Nesse quesito os tropicalistas deram passos mais radicais (e originais), --- gente, e antes o Hendrix também já tinha chutado a barraca, né? --- ponto

Na fragmentação do discurso vejo uma tendência atual, ainda que não nova. Toda a relação de espaço tempo muda para um homem urbano. Poesia concreta não é à toa. Isso, apesar de ser amplamente tematizado nas composições musicais dos compositores de “música contemporânea”, parece-me que chegou ao universo da canção via reggae e afrobeat. As texturas acabam sendo úteis porque formam gestalts, criam espaços. A rotatividade de texturas provoca uma constante atualização da escuta. É como andar no centro de uma cidade, entrar e sair de cômodos, zapear a TV, mil janelas e abas no navegador.

            Mas aí o texto enfia o pé na armadilha mais fatal, vai criticar o arranjador do Chico Buarque. Oh!!
          Rss... Uma grande ousadia que merece ser parabenizada pela coragem em, mais do que ao Luiz Claudio Ramos, se impor em meio à uma crítica mal preparada e bajuladora! Louro à parte, o autor apresenta uma pequena (e inocente) análise dos últimos discos do Chico, focando um diálogo existente entre as primeiras faixas dos álbuns. Mas culmina na afirmativa de que o último disco é mais fraco do que os anteriores. Putz! Como isso? Que escuta mais tendenciosa! Eu penso e argumento o contrário. Radicalmente o contrário. Acho que Chico é o melhor disco do Chico! Tenho meus motivos para achar isso, e por isso causa polêmica, pois os motivos são MEUS, mas daí a representarem uma verdade é um “passo torto”, com o perdão do trocadilho.

Também penso que, por vezes, o Luiz cai em algumas inocências durante os arranjos (principalmente na primeira faixa, ao colocar elementos quase ilustrativos do texto), mas estes momentos não são, de forma alguma, a maioria dos casos. O que escutamos na maior parte do tempo são refinados contrapontos e encadeamentos. E não podemos deixar de dizer que o time de instrumentistas é de primeiro escalão, o que inevitavelmente agrega muito à sonoridade.

Um exemplo de inocência, segundo Froes, seria o arranjo de Tipo um Baião. Discordo novamente, o arranjo desta canção é genial! Respeita e amplia a canção de Chico. Não é nada ingênua a oscilação dos andamentos e das texturas deste arranjo, que recria em sua macro estrutura a principal metáfora da canção. Um coração sanfona. (artigo interessante)



Mas o Luiz não é um cara inocente mesmo! É só escutar como a guitarra é timbrada aos demais instrumentos. E aquela melodia da introdução? Que coisa é aquela, meu deus?! … Tá, quer escutar como é rico o trabalho de sonoridade dos arranjos do Chico? Escutem o gesto final de Tipo Um Baião (+- 3'21''), uma frase que vem pipocando nos instrumentos. Que coisa mais bem acabada, minha mãe!

Bem, vejam o lado positivo, niguém falou que o arranjo do Luiz Cláudio para “Se eu soubesse” não era melhor (ou, menos ingênuo) que o arranjo do disco da Thaís...