terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Hahaha! Saiu o segundo clipe do novo disco do Ogi

João de Carvalho

Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode. ... É por isso que somos todos bricoleurs; cada um suas pequenas máquinas. (Deleuze e Guattari)


Rá!, o novo álbum do rapper paulistano Rodrigo Ogi, é com certeza um dos melhores lançamentos deste ano. O disco tem uma sonoridade riquíssima e a caneta de Ogi está mais ágil do que nunca. Suas crônicas são construções cinematográficas, que envolvem sempre muitos personagens em ações de muitos movimentos. Obra esquizofrênica - de muitas vozes na cabeça -, como já é natural na estética de intertextualidades do hip-hop, mas bem mais densa do que o comum. Reflexo de um narrador que luta para "acordar os órgãos de seu corpo", contrariando o simples uso do corpo que o capitalismo nos impõe (Deleuze e Guattari, em "O Anti-édipo - Capitalismo e Esquizofrenia"), um "corpo/máquina sem órgãos", com a função desejo atrofiada... A primeira faixa é uma "rádio/narrativa" em que o rapper chega ao consultório para uma seção de terapia.  

Na faixa seguinte, o primeiro rap do álbum, Ogi apresenta seu narrador - que se mistura, mas também se dissolve, na figura do próprio rapper - como um "Aventureiro", em versos como "pois eu sou louco e ligeiro, louco e ligeiro, aventureiro/ e assim a selva cinza eu vou conquistar". Na faixa seguinte o narrador começa a relatar o que vê em seu caminho de desbravador das dores da cidade, em "Estação da Luz". Essa faixa relato de caminhante lembra-me muito duas canções, o "Brejo da Cruz", do Chico Buarque, e "Metrô linha 743", de Raul Seixas. As proximidades do plano formal se dão no trabalho da rima em em "uz" - em relação à obra do Chico - e de uma estrofe que se finda com a localização título - em relação à obra do Raul. Mas existem proximidades de conteúdo, e nesse sentido, de  "vozes da rua" que são registradas nas 3 canções.

Eu já havia, no post passado, chamado a atenção para o clipe de "Trindade, parte 2", um ótimo clipe que se utiliza da técnica de animação, ainda pouco explorada dentro do universo do hip-hop. Pois bem, a chamada de atenção vem novamente para este álbum agora por conta de outro clipe surpreendente. Me refiro ao lançamento de "Hahaha", clipe da canção correspondente à quarta faixa do disco Rá!.




O clipe é simples e ao mesmo tempo criativo. Simula um relato recheado de "aventuras amorosas", contadas para outros homens (Mc's de grande relevo dentro do hip-hop nacional). Ou seja, o rapper se aventurou em um território minado, dificílimo de se equilibrar sem cair em machismos. E, diferente do público de rap de antigamente, a sonoridade e as parcerias que compõe o álbum e aparecem no clipe (Criolo, Emicida, Black Alien...) formam um produto que aponta para um público composto em muito por mulheres, cada vez mais emancipadas e vigilantes. Não é à toa que na sequência filmada com o Emicida ambos aparecem caracterizados como sambistas dentro de um jardim - "Trepadeira", a canção que colocou o Emicida numa baita saia justa, se estrutura somente com nomes de plantas.


Mas o desfecho da história, o cuidado em "se garantir" no lado literário de seu texto, as imagens de contraponto das mulheres rindo da cara do convencimento do narrador, e o sonho, redimem Ogi. Até a performance do Criolo parece meio sem graça, cheia de um constrangimento de quem escuta e percebe o devaneio e o enrosco que o narrador vai se envolvendo. Na realidade todos os participantes do clipe escutam o relato já cheios dessa espécie de constrangimento.

Logo nas primeiras escutas desse som me veio uma outra canção à mente. Mais uma vez me parece curioso uma escuta em paralelo, agora com a canção da freira Jeanine Deckers. O paralelo inusitado é por conta da canção mais famosa da freira cantora, Dominique. Porém a canção de teor religioso, que brinca de maneira "primaveril" com o a sonoridade "nique nique" - primeiro mote sonoro do texto de Ogi - foi convertida de maneira "profana" para o português.  A gravação da freira desbancou até mesmo os The Beatles em 1963, e no ano seguinte foi lançada em português na voz de Giane.


Na versão em português, apesar da ingenuidade do sonho da personagem, que projeta um enredo romântico para seu amor - me chama a atenção a livre apropriação da obra, que se torna ousada ao pensarmos no contexto da original religiosa. O fato é que esse é só o estopim do compositor paulista, que vai dichavando rimas em "ique" na primeira sequência de versos. Depois ainda aparece uma citação ao Simonal - "mamãe passou açúcar em mim" - que mantém o tom de bom humor da narrativa.

Bem, apesar desse respiro pelo lado de Eros, nesse Amor/Humor engraçadíssimo, o disco não se distancia da violência e dos discursos "politizados" do hip-hop, que se embebem de Tanatos. Percebo, para finalizar a reflexão, como alguns instintos de "Amor e Morte" andam se equilibrando em mais de um grande lançamento deste ano. O disco do Chico César - que saiu pela LabFantasma - é outro que me chama a atenção nesse sentido.





domingo, 8 de novembro de 2015

O caso do cronista pixador Ogi

João de Carvalho

O presente texto é um pequeno "mapa", parte de uma cartografia maior, cujo foco é perceber a articulação audiovisual dentro do hip-hop paulistano. Isso bem em linhas gerais. Interessa saber que posto aqui mais até para chamar a atenção para o lindo disco do Ogi, RÁ!.




O desenvolvimento do texto, porém, foca mais em uma única canção - a que tem videoclipe. Isso pq este texto tb está em movimento e construção, e começou a ser gestado de um ponto específico, à saber, dentro da disciplina de Humor Gráfico e Processos Sociais. Ainda pretendo expandir estas reflexões para outras obras do disco, e outros clipes do próprio Ogi. Mas isso não é uma promessa. Por enquanto, segue a reflexão sobre "Trindade pate 2".


Dentre as muitas formas que o “audiovisual como expansão da canção” pode assumir, está o vídeo/clipe de animação. Esta forma é caracterizada por elaborar uma narrativa, normalmente nos modelos já estabelecidos do vídeo/clipe comercial, em que se alternam a imagem do artista e um enredo dramático paralelo. Dentro de quase todos os estilos musicais existem casos de vídeo/clipes que se utilizam da animação, misturando-a com imagens fílmicas dos artistas – como no caso de Jack Johnson, em Upside Down – ou transformando os músicos em personagens de animações – como no caso radical dos Gorilaz, uma banda que só existe na forma de animação.

O rap paulistano, hora ou outra, também se vale desta forma de comunicação áudio/visual para divulgar suas canções. O exemplo mais recente, e talvez, até agora, mais bem sucedido, é o caso de “Trindade, parte 2” do rapper Ogi. O vídeo foi lançado no youtube no dia 02/12/2014, e foi a primeira faixa divulgada do disco lançado semana passada (Rá!), dia 02/10/2015.

Rodrigo Ogi é um rapper paulistano que rima desde 1994. Seu primeiro disco solo é o excelente “Crônicas da Cidade Cinza”, de 2011. Ogi, além de rimador é produtor de batidas, grafiteiro e pixador. A relação que ele tem com as imagens reverbera de maneira muito interessante em seus textos, que são identificados por muitos como verdadeiras “crônicas”. No disco que o Criolo lançou ano passado tem um verso em que ele diz “um cronista? Ogi!”, como uma homenagem ao estilo do rapper. Inclusive essa proximidade com o pessoal que toca com o Criolo pode ser sentida em praticamente o disco todo, e de maneira mais explícita nas faixas onde o grupo MetáMetá1 se manifesta. O produtor Daniel Ganjaman, braço direito do Criolo, soltou em sua página do facebook, no dia do lançamento de Rá!, que este era o disco que ele estava mais escutando já fazia semanas. Fato é que qualquer mapeamento do áudio/visual do hip-hop paulistano, feito de maneira séria, não pode passar batido pela figura contundente de Rodrigo Ogi, e o vídeo de “Trindade, parte 2” é uma ótima oportunidade para pixar o “Rá!”, do Ogi, neste livro de mapas.

Já na segunda cena de Trindade, vemos o letreiro/pixação da cena inicial de dissolver em uma nuvem de fumaça, enquanto passa um trem de metrô todo “grafixado”2, paisagem urbana típica, com a visível presença do gueto na vida pulsante das metrópoles. O personagem principal da primeira sequência, o cronista, vem em cima do trem, salta o viaduto e chega ao baile. A associação do personagem da animação com o rapper Ogi é direta, a começar por traços de semelhança, mas principalmente pela cena, já logo no final da primeira sequência, em que o personagem principal da animação aparece cantando o texto, como se fosse o próprio MC.

Após chegar ao bar - ao baile - o cronista também se dissolve, em meio à vozes confusas, entramos no território da alucinação, no domínio da percepção alterada pelas drogas. Uma parte do curto, mas denso, clipe se passa no rolé da loira psicodélica na bicicleta.

Esta personagem lisérgica vai se transformando até que vemos o enredo do filme, e da narrativa da canção, passar para o ângulo do fornecedor da “brisa”. A caracterização deste personagem, fornecedor de drogas na noite, é a de um sujeito negro, que bebe enquanto dirige infringindo várias normas de trânsito. Este, logo chama a atenção da polícia e inicia-se uma perseguição.

O final da trama é arrepiante, reforçado principalmente por conta da velocidade dos eventos que se sucedem em menos de 2 minutos, e vemos o traficante se executado pela polícia, e no lugar do traficante vemos o rapper do início. A mensagem não é clara e moralista como em uma narrativa de campanha anti-drogas, mas a ligação entre o consumo, o tráfico e a tragédia é feita de forma arrebatadora.

No programa Estamos Vivos3, apresentado pelo DJ KL Jay, integrante do Racionais MC's, podemos acompanhar uma entrevista interessantíssima com Rodrigo Ogi. Nela, acompanhamos os dois em um passeio na região da casa do MC, onde vemos rastros nos muros, de ocupações noturnas de grupos de grafiteiros. KL Jay leva Ogi à um Sebo, onde presenciamos um bate papo que comprova a relação entre Ogi e as artes visuais, principalmente às narrativas visuais. Seus rap's são crônicas, é certo, mas são crônicas de um ávido leitor de quadrinhos e pixador inveterado, que escreve como que desenha uma história.



O clipe de “Trindade, Parte 2”, por dialogar intimamente com a poética do hip-hop e em específico com a estética do MC, é uma boa forma de adentrar o universo textual, poético e imagético de Rodrigo Ogi, e foi um bom aperitivo para o disco “Rá!”, em que o cronista pixador aprofunda seu radicalismo textual, polifônico e labiríntico. A escuta do álbum sugere, como muitos discos de rap, uma narrativa fílmica.

1Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França.
2Neologismo – gíria – que traduz a forma de expressão híbrida, entre o grafite e a pixação.
3Programa número 3, disponível no youtube, no canal Noisey. A websérie apresentada por KL Jay é mais um belo exemplo de como o hip-hop se articula com programas independentes feitos diretamente para o youtube.   

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Um Papo com Metá Metá

João de Carvalho

No dia 12 de junho de 2015 o Metá Metá (Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França) esteve aqui em Londrina para um show no SESI. Aproveitamos (eu, o Danilo Lagoeiro, a Laura Lago, o Lucas Godoy e a Gisele Almeida) e a passagem do grupo pela cidade e realizamos um bate papo. Entre os assuntos que surgiram estão a "experiência do grupo em Rabat (Marrocos)", a ancestralidade e sua relação com a música que o grupo faz e a força e os impasses da produção musical independente no Brasil. 



No dia seguinte (sábado, 13) eu me apresentaria no mesmo palco, e por coincidência estava no meu programa tocar a Ciranda pra Janaína, do Kiko, durante o show. Repetindo o gesto de constrangimento de tocar a música pro próprio compositor, como fiz quando o Siba passou por Londrina, eu toco a composição do Kiko pra ele, pro Thiago e pra Juçara. E ela até cantarola comigo!!! rs

Dentre as muitas falas interessantes que saíram neste bate papo, gostaria de destacar uma fala do Thiago França, mais ou menos no meio do vídeo, onde ele diz sobre a relação entre religiosidade, postura política e arte que compõe parte da mistura que fundamenta o Metá Metá. 

"quando você não esconde o que você é, isso já é um ato político" Thiago França

Destaco esta frase/passagem pois acredito que aqui temos um dado muito importante para alargar o debate para quem sempre se indaga sobre se existe "arte engajada" hoje. 

De verdade, eu fiquei com uma baita vontade de continuar a bater papo e perguntar sobre monte de coisas, como por exemplo, sobre a troca que acontece entre eles e o hip-hop paulistano. Mas isso é assunto para próximos capítulos, pois, afinal, estamos vivos e ainda vai dar tempo!



Agradecimentos ao Metá Metá
ao Sesi Londrina
ao Teatro de Garagem
e à Vila Cultural ALMA Brasil.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Atenção, Ávidos Ouvidos: Novo Curso!

"a canção e seus sentidos é o nome do curso
em que praticamos o rito de uma escuta intensa sobre
um repertório simbólico cotidiano"


Depois de um ano sem a realização do curso que gerou este blog, voltamos a ofertar vagas e, agora, com um programa reformulado, ampliado, e com nova locação (estamos dando aula em um espaço mais adequado, ainda na Vila Brasil, centro de Londrina).  Mas calma, eu vou explicar o que é esse tal curso e como ele funciona, e consequentemente dar uma chave de leitura para as palavras, sons e imagens que residem neste espaço virtual. Você me conhece? Talvez sim. E se sim, muito provavelmente deve ter me visto meio louco tagarelando sobre canção ou hip-hop por aí. Será que eu tava falando de Racionais de novo? Putz, foi mal. Mas, se você tem a intenção de se aproximar, como alunx ou leitor(a), acho que é bom já ficar avisado.

Se você não me conhece; muito prazer! Sou o João de Carvalho. Tanto o tal curso como o blog são vozes da minha cabeça. E à propósito, você já assistiu minha entrevista no Conversa de Varanda, da Gisele Almeida? Não? Então dá uma olhada lá antes de seguir lendo, isso talvez te incentive a fazer o curso, ou continuar na leitura, ou sirva ainda pra te alertar que o que você procura não está aqui. Mas antes de partir, veja o vídeo:


Legal, né?! Mas ó, este vídeo não é um retrato atual, depois disso que foi registrado eu aprendi muita coisa. Verdade. De lá pra cá, devorei muitas almas mais. Me aproximei da yoga, do hip-hop e aprendi a correr. Digo isso pois isso estará presente na aula, em forma de conteúdos e perspectivas metodológicas, temas e atividades. O vídeo me registra em um momento que estou "preparando o salto", pra usar as palavras do mestre Siba. Eis que saltei, e meus saltos permeiam a sequencia dos posts desse blog (se você é leitor/amigo, tô chovendo no molhado). Compreende que pra entender o que é o curso, ou este blog, você precisa conhecer, ao menos um pouco, meus caminhos? Percorri diversas sendas, sempre acompanhado de meu violão e minhas canções. E pronto, já não estou mais falando de mim, e sim dessa Gaia Ciência, desse "saber alegre" que me persegue. Sou só mais um porta voz desse artesanato ancestral.

E então, você já se perguntou sobre o que é canção?
Já parou pra pensar em como as canções que você escuta dizem muito sobre você, pois te traduzem e te programam? Canção, à grosso modo, é música com voz. A música, que é a arte dos sons, é capaz de coisas que só a combinação e interação de sons pode produzir. São afetos de impossível definição. Já a arte da canção se utiliza dos poderes da palavra. E palavras apontam para o mundo. Assim, canções são memórias do mundo. Espelhos e balizas. Palavras são sons, presença, e imagem, ausência. Canção é tanto uma forma de música como uma forma de poesia. O repertório de canções que trazemos em nossa memória (mesmo que não saibamos as "letras" completas) formam parte considerável do estofo simbólico que nutre nossa psique. Nossa apreensão do mundo e, consequentemente, nossas respostas ao mundo costumam seguir de maneira muito próxima o enredo de cantos que interiorizamos. Pensando nisso, não seria interessante você compreender como funciona esta arte tão presente e perigosa? 

"os conteúdos foram sistematicamente separados
mas a dinâmica da aula flui como um rio
que ao correr da correnteza bebe a água de outros rios e esmigalha
a corrente e a certeza"

Eu já conduzi o curso 3 vezes em grupo (e já tive alguns alunos individuais que também passaram por este processo), com turmas heterogêneas e muitas vezes sem formação musical complementar. Posso dizer que foram experiências transformadoras. O curso começou programado para ser realizado em 4 meses. Mas foram entrando tantos conteúdos novos que agora me vejo com uma organização de 3 módulos de 4 meses cada. São 16 encontros de duas horas por módulo. Total de 96 horas de aula!

Não é objetivo geral deste curso formar cancionistas compositores. Esta é uma dúvida frequente. O objetivo deste curso é despertar nossa escuta crítica sobre a arte da canção. No fundo, é um curso de percepção. Mas é claro que para nos aprimorarmos na arte de composição de canções devemos aprimorar nossa percepção neste repertório. Isso é óbvio quando pensamos em música instrumental, onde, para adquirirmos a linguagem de determinado estilo precisamos, antes de tudo, aprender a perceber os elementos que estão em jogo. É assim com canção também, às vezes a brincadeira é a melodia, às vezes é o flow, tem caso que é a harmonia, noutros a atitude, em alguns o jogo está no que o ritmo faz com nosso corpo... resumindo, não é um curso de composição mas é um curso também indicado para compositores. É válido dizer também que atividades de composição, por vezes, aparecem como método para desenvolvermos nossa percepção, mas nunca com o objetivo na própria composição.

Manoel Bandeira, fazendo um som
Seria recomendável que x alunx tivesse uma prática musical ativa (tocar algum instrumento ou cantar), mas isso não é fundamental para fazer o curso. Da mesma maneira, é recomendável uma vida com prática poética (leitura e/ou composição de poemas), mas também não é condição essencial. Compreender razoavelmente bem história e geografia, do Brasil e do mundo (conseguir se perceber dentro de um processo histórico e social), ajuda muito a fluência do curso, mas também não é condição. Qual seria a condição para participar destes ritos de escuta crítica? Teria alguma, afinal? Talvez sim, penso que se você estiver mesmo interessado em fazer o curso - ou acompanhar minhas escutas no blog - você precisa de duas coisas: ousadia, para se lançar em escutas de coisas desconhecidas, e avidez por compreender o que entra pelos seus ouvidos. De resto, este 1 ano de curso trará o pensamento de figuras como Ezra Pound, Zé Wisnick, Luiz Tatit, Bakhtin, Paul Zumthor, Jung, Edgard Morin entre outros, que darão suporte para compreendermos alguns dos mistérios dessa arquetípica arte.

Sobre a dinâmica da aula? É fundamentalmente um curso de escuta de obras. Escutamos uma canção diversas vezes e debatemos sobre nossas percepções, já orientadas por leituras sugeridas, mas contando também com as vivências pessoais de cada um (isso quer dizer, também, que cada turma será uma história completamente diferente!). Mas para ativarmos nossa percepção sobre aspectos específicos do artesanato cancional, nada melhor do que nos exercitarmos dentro de atividades de criação. Não é na expectativa de realizar uma "obra de arte", mas sim de experimentar praticamente como funciona elaborar um material expressivo como a canção.

Mas, e aí? Ficou com vontade de fazer o curso?
Tá, falta falar da logística de hora, lugar e valores, né?!
Dessa vez eu não abrirei alguns horários definidos, onde os interessados se "candidatam". Farei diferente. O material do curso está separado e já estou à disposição para receber novas turmas que se formem autonomamente, com horário a ser negociado via telefone ou e-mail. O curso poderá funcionar com um único aluno ou em grupos de até 8 pessoas. Alunos que já cursaram o "A Canção e Seus Sentidos" podem se inscrever nos módulos 2 e 3 (o primeiro módulo também pode ser feito, mas seria uma retomada dos conteúdos do curso original, provavelmente com outros exemplos e certamente com outros debates).

"e eis que estou aqui
pra devorar e ser devorado
para somar e ser dividido
para cantar e ser decantado
pela escuta de vocês"

ps.: tô no tel.:3323-9933 / e respondo o e-mail: jocarv1984@yahoo.com.br 


terça-feira, 5 de maio de 2015

Pé de Guerra no Paraná: pra parar de cantar Vandré

João de Carvalho



O mote principal que uniu os professores em Curitiba foi o roubo da previdência efetuado por Beto Richa. Este, utilizando-se da violência de seus capitães do mato, empurrou goela abaixo o tal pacote da maldade. Os professores, e demais servidores do estado, perderam uma importante batalha. Os estudantes, já atuais ou futuros professores, também perderam. O que resta agora? Voltar às aulas? Fazer uma greve de 3 dias e depois voltar para os confortos que ainda nos restam? Batalhar pela pauta que ainda permanece em aberto, flexibilizando um pouco mais, talvez, pois já sentimos que seremos os mais prejudicados, com o ônus das reposições e dos descontos... afinal, né?

Bem, amigos, estamos em uma encruzilhada. 
E não estamos tão unidos como gostaríamos de estar.
Muitos entraram neste movimento por um motivo justo, porém ainda muito pequeno. Se formos pensar que o que está em questão é apenas o bote do crocodilo na previdência, estamos quase no fim do estado de greve, saímos machucados, mas vivos. ... demos aula de cidadania! ui...

Por mais que os abusos tenham nos chocado, o que aconteceu já estava previsto para acontecer. Não precisa ler Tarot, e é claro que é mais fácil de dizer agora, mas sim, dava pra prever. Mesmo que não tivéssemos acesso às recomendações que o Ministério Público fez ao governador Beto Richa, onde se antevia uma tragédia, poderíamos sim perceber o que estava para acontecer. Em essência, a violência que sangrou os professores, servidores e alunos em Curitiba foi a mesma que tirou a vida do garoto Eduardo, de 10 anos, morto na porta de sua casa (empunhando um caderno) no Complexo do Alemão. 

Creio que quem escutou com atenção a décima faixa do novo disco dos Racionais MC's, o Cores e Valores, não se surpreendeu (revolta sim, surpresa não) com o circo armado pelo tirano do Paraná. A canção se chama "A Praça", e narra a tragédia ocorrida em 2006 em um show dos Racionais MC's, na Praça da Sé, em São Paulo. Escutem! Como a canção é curta, recomendo dar o play duas vezes, com som apropriado, uma escuta de olhos fechados e outra acompanhando a letra, que posto em seguida...




A Praça

"Madrugada de domingo em São Paulo... "
"O show da virada cultural terminou em meio a uma gigantesca confusão
Foi a apresentação do grupo de rap Racionais Mc's"
"Racionais... "
"Racionais Mc's... "
"Foi na praça a Sé, uma verdadeira praça de guerra... "
"Bombas de efeito moral e balas de borracha... "
"Desesperadas as pessoas tentavam fugir do confronto"
"Vem pra cá... Vem pra cá"
"quer dizer, a polícia não poderia ter evitado? "
"até que ponto o uso de bala de borracha e gás lacrimogênio não acaba aumentando a confusão? "
"Tem que pensar com inteligência. O cara tem que ter inteligência, certo?
Essa correria ai de um lado pro outro só vai machucas as pessoas"

Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura
Uma arma na cintura, o sangue na moldura
Uma farda, uma armadura, um disfarce, uma ditadura
Um gás lacrimogênio e algema não é a cura, é luxuria.
Uma censura, tentaram e desistiram
Pularam atrás da porta, filmaram e assistiram
Pediram o nosso fim, forjaram uma lei pra mim
Tiraram o nosso foco dos bloco e o estopim
Tentaram eliminar, pensaram em manipular

Tentaram, não bloquearam a força da África
Chamaram a Força Tática, Choque a Cavalaria
Polícia despreparada, violência em demasia!
Mississípi em chamas, sou fogo na Babilônia
Tragédia, vida real com a mão de um animal
Brutal com os inocentes, crianças, velhos, presentes
Ação inconsequente, covarde e desleal
Os moleque com pedra e pau
Polícia com fuzil, bomba, carro pegando fogo

Porta de aço, tomba, a mãe que chama o filho
Enquanto toma um tiro, alguém perdeu alguém
A alma no gatilho, fugir para o metrô
Tumulto no corredor, pisotearam alguém
Que ali mesmo ficou nas ruas adjacentes
A cena era presente, destruição e guerra
O mundo que desabou, ho!

"05h30 da manhã e a polícia ainda encontrava dificuldade pra controlar a multidão"
"Não há mais nada o que fazer na Praça da Sé"
"A praça a Sé parece nesse momento uma praça de guerra. Muito vidro quebrado pelo chão e lixo espalhado por todo lado"
"11 pessoas foram presas e quatro ficaram feridas"
"A prefeitura vai assumir todas as suas responsabilidades... E dará todo apoio necessário às pessoas que, eventualmente, tiveram algum dano relacionado ao incidente"
"Os Racionais... "

Exemplos como este que a canção retrata nos dão uma medida de como funciona a fera que o estado alimenta pra lhe proteger. Mas claro, isso foi em 2006, ainda não havia ocorrido as passeatas de 2013, não havia ocorrido nem a copa nem as eleições. O clima agora está cada vez mais quente, e isso quer dizer também que os cães do estado estão com fome. Temos que estar atentos e não sermos presa fácil. Felizmente ninguém morreu no massacre, apesar de quase 200 feridos (5 traumatismos cranianos) e do pacote aprovado sob a regência de Ademar Traiano do lado de dentro da Alep. Isso, infelizmente, costuma acontecer também. Vocês se lembram do cinegrafista Santiago, não é mesmo? 

Esse movimento começou por causa do pacote de maldades do tirano Beto Richa (que foi eleito para seu segundo mandato num primeiro turno, com esmagadora maioria de aprovação do povo paranaense) tal como as mobilizações de 2013 começaram por 0,20 centavos, mas deve se expandir pelo país como um grito anti autoritário, que pede reformas urgentes e radicais. Em outras palavras, é claro que se não lutarmos contra o atual sistema que regula a mídia no Brasil e não encararmos de frente o debate sobre a desmilitarização da polícia, com certeza nos esperam mais derrotas, e ainda mais sangue pode escorrer na calçada.

Nesse momento, tão importante quanto lembrarmos dos itens da pauta que a APP ainda negocia com o governo, é saber que a polícia, neste exato momento, cerca a Câmara dos Vereadores de Recife para atender aos interesses de grandes construtoras, em mais um confronto anunciado... tomara que não, mas a atenção deve ser a mesma, a comoção deve ser a mesma. Caso contrário, se os professores servidores e estudantes não começarem a se engajar em níveis mais profundos, se preparando realmente para estes momentos de enfrentamento e conquista das ruas e das redes, é sinal de que estamos em uma luta perdida.

À propósito, acho que seria importante também escutarmos um pouco o que MV Bill pensa sobre isso. Essa nem preciso colocar a letra, dá pra entender direitinho:


No fundo, acho que o que eu queria dizer é isso: se nós, professores, continuarmos a cantar em nossas manifestações as canções "Pra não Dizer que Não Falei das Flores" ou "Apesar de Você" (em andamentos mais lentos que as gravações originais, diga-se de passagem), ficaremos sempre presos no passado, nostálgicos, sem conseguir compreender o mundo que nos cerca. Ao contrário, se atualizarmos mais nosso repertório, escutando um pouco mais do que o RAP tem a nos dizer, podemos estar mais preparados para as lutas que nos esperam.











sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Canções para um Paraná em greve: carnaval mais que mascarado

João de Carvalho

Professores em Curitiba. (não encontrei o crédito da foto)

Fevereiro tá quase acabando e só agora faço a primeira postagem do ano.
Antes fosse um problema de protelação só meu, mas parece-me que por aqui as coisas só começam mesmo depois do carnaval... mas na real não, elas sempre se engendram de muito antes. Mas acho que é mesmo no carnaval, quando os indivíduos trocam as fantasias, que podemos ver com mais clareza algumas máscaras caírem. Não à toa, fevereiro do ano passado pintou de laranja nossas almas quando os garis do Rio ergueram seus punhos. Mas desta vez, sintomaticamente, a mídia televisiva tem dado muito pouca importância para a greve dos servidores do Paraná, mas por aqui tá um paranauê danado!

Os professores foram os que puxaram o coro dos contrários dentro deste estado que reelegeu seu governador logo no primeiro turno. Na ocupação da ALEP conseguiram impedir que votassem o “pacotão de maldades” proposto pelo tucano. Mas não são só os professores que estão em greve, o estado inteiro está parado, já são mais de seis greves acontecendo, e na entrevista mais que maquiada dada à imprensa, o Pinóquio, dando mostra de já ter matado seu grilo faz tempo, ainda quer dizer que faltou compreensão dos funcionários... que já havia dado aumento de 60% para a classe... aaaaah! Beto Richa é o puro creme do migué, mas ainda é só o chorume que escorre de um saco de lixo no centro de nossa sala.

Bem, fui chamado para tocar na recepção dos estudantes da UEL, no que seria o primeiro dia de aula da universidade em que me formei, na qual ainda estudo, e na qual sou professor. Acordei segunda pela manhã e fui correndo pra Universidade, durante o caminho fui cantarolando o repertório que eu havia ensaiado para este dia e pensando no significado de tudo isso. Cheguei no ginásio de Educação Física, local da primeira Manifestança (como foi batizado o evento de recepção promovido pelos professores em greve), com a calça cheia de carrapicho devido ao mato alto da UEL. Os estudantes (naquele momento haviam poucos, mas concentrados e comprometidos com a energia de resistência e transformação que o momento pede) tiveram que se sentar em tecidos espalhados pelo chão, devido à sujeira que se encontra a universidade.

Acho oportuno comentar o repertório que toquei neste dia, como um registro desse vento que soa por aqui. Peço licença para comentar sobre meu próprio trabalho, sobre minhas canções, em uma atitude um pouco suspeita. Não estou buscando confetes sobre meu trabalho de cancionista, vocês podem não gostar, inclusive... normal. Minha maior intenção é ajudar a roer um pouco algumas fantasias, e quem sabe, poder rasgar um pouco mais do saco de lixo da nossa sala. Para isso vou fazer um breve comentário sobre cada uma das canções que toquei, colocar a letra, e alguma referência audiovisual. Me segue na escuta?

A primeira canção que toquei chama-se Revolver a Terra, onde cito a canção Volver à los 17, de Violeta Parra. A canção da Violeta é uma obra prima que traz a fantástica imagem de uma revolução que se enreda como uma hera no muro, um musguinho na pedra! Eu cheguei na UEL quando tinha 17 anos, e cantar essa canção para jovens que acabam de sair do Ensino Médio foi altamente simbólico. Foi mágico, como diria o Morin. Não tenho gravação da minha canção, mas vocês estarão melhor acompanhados com a Violeta...

Revolver a Terra (J.C.)
o sêmen, a semente, a terra, fecundam o tempo
a noite, sob o solo da lua a luz vai cantando
húmus humanos, putrefos hermanos
hera herbarium no muro
musguinho pedra caminho
minhoca cavuca o chão

voltar aos 17, depois de viver um século,
é como decifrar signos, sem ser sábio competente
voltar a ser simplesmente, tão sábio como um segundo
voltar a sentir prufundo, como um ninhõ frente a deus
isso é o que sinto, nesse instante profundo

se vá enredando, enredando, como no muro a hera
e vá brotando, brotando, como o musguinho na pedra
como um musguinho na pedra, ai sim, sim, sim!”

são sempre sorrateiras as vidas que eclodem nos cantos
os ratos, as baratas, as lesmas, formigam o tempo
húmus humanos, putrefos hermanos
hera herbarium no muro
musguinho pedra caminho
minhoca cavuca o chão



A segunda canção que cantei foi uma que chamo de Vai o Vil. Se trata de mais uma releitura/diálogo, dessa vez com a canção andina El Condor Passa. A obra original, da qual aproveito a melodia, trata dos incas trabalhadores escravos na mineração do Peru. Eu escrevi um poema, que depois se adequou à melodia andina, ao ver, na época da mobilização sobre a construção da usina de Belo Monte, a imagem de um índiozinho Guarani-Kaiowá chorando. No fundo o clamor final, “não é seu filho quem chora”, tem o mesmo germe do conflito que se instala agora aqui no PR. É claro que a tal austeridade pesa muito mais nas costas do trabalhador comum do que no cotidiano da casta palaciana de nosso estado. Também não possuo gravação desta canção, então deixo vocês com a letra que cantei e com o áudio da versão de Paul Simon para o tema, também uma recriação livre.

Vai o Vil (J.C.)
vai o vil
metal matar
encher o rio
liquidar a vida aflita
nos olhos dos outros
é refresco
a partida, afinal
não é seu filho quem grita,
nem aos seus, o que é sagrado
não é seu deus que agora morre
afogado.



A terceira obra que apresentei foi uma recriação de duas canções, o negro spiritual No More Auction Block For Me e o 'hino' Blowing the Wind, de Bob Dylan. Já durante as manifestações de junho de 2013 eu havia comentado sobre estas canções aqui noblog.

Não Mais
Não mais leilão de mim, não mais, nunca mais
não mais leilão de mim, foram tantos...

Não mais chicote do capitão do mato,
não mais acoites, foram tantos...
Não mais estala em minhas costas a dor
não mais o sal nos cortes, foram tantos...



Quantas ruas
Quantas ruas um homem tem que parar
antes que o chamem de homem?
Quantos mares as pombas devem riscar
antes que pousem e repousem?
Quantas bombas do céu devem cair
antes que matem a fome?
A resposta, meus caros,
ela vem com o vento
e faz do tempo seu invento.



Durante as manifestações que antecederam a Copa do Mundo do ano passado, passou por mim uma canção que batizei de Dragões. A imagem de São Jorge – Ogum – é evocada neste canto. Um canto para manter na memória que “a luta não é brincadeira”, e que no saco podre que escorre chorume no centro de nossa sala tem muito mais coisa do que só a excrescência de um único partido. O trecho inicial da canção, seu refrão, é uma nota de facebook do também professor da UEL, Betto De La Santa, que quando eu li já li cantando... essa tem uma gravaçãozinha caseira... escuta só:

Dragões (Betto de la Santa / João de Carvalho)
Morreu um cinegrafista
morreu um camelô
morreram operários
na copa houve luta
e nós vamos lembrar

será que o rojão partiu do lado de cá?
quem rachou a rua em partes o circo quer armar
diabo é o que separa
raiz de todo o mal
o bode, o bonde, a cabra ensanguentada do Cabral
não me iludo, a luta não é brincadeira
a morte é coisa séria e certeira
esperança não se finda quando o corpo cai no chão
mas não dá pra esperar pra ver o fim da equação
achar que é exagero
taxar de vandalismo
é chamar raso barranco esse baita desse abismo
mas não vão nos calar

bufando fogo
na ação do aço
no caminho da justiça

ô, Sâo Jorge o dragão tem
cargo público e mansão
ô, São Jorge o dragão tem tem
cassetete na mão


Depois da Copa tiveram as eleições, e o clima esquentou geral! Compus nesse período uma canção chamada “O Que lhe Serve”, e esta foi a quinta canção que toquei naquela manhã de segunda feira. No meio eu cito Maiakóvski, na versão de Augusto de Campos. No poema, o poeta russo coloca o sol em seu lugar. É um poema inspiradíssimo e inspirador, composto por um sujeito solar e sensível, comprometido com a educação dos cinco sentidos! Essa eu não tenho registro nenhum. Mas vou postar a letra... é um rap, se você arriscar ler em voz alta é capaz de ficar bom ;)

O que lhe serve? (J.C.)
sim senhora agora lá fora o sol apavora
embora a gente que caminha a qualquer hora
juba de leão que sem sol embolora
sabe que em frente ao medo, de front ao front,
afronte e enfrente, uma bica de água fresca
está sedenta pra nos beijar
a mente mente o tempo todo
raio de luz na lente acende o fogo
oásis se formam a ilusão, é, ela faz parte do jogo
a rima mina a mina e contamina a lógica
o lábio da menina linda lendo embaralha a ordem cronológica
febril, subo mais um monte, o horizonte
ideia à mil, opressor céu azul de anil
nenhuma nuvem pra aliviá, sei que vou chegar
vermelho
e o espelho me diz:
tú é um aprendiz
aprendiz de feiticeiro, faceiro, vai
lava o teu rosto na pia do banheiro
que só o sangue corando a face anima a vida
mas cuida do disfarce, acerta o look,
que tudo é fake, tudo é fase, e a opinião é só uma onda no facebook
livro das caras a coragem que ladra não morde
as pedras que rolam
vira lama, vira terra, vira flor
e não pensam na sorte.

Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá prá o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.” (maiakovski)

e vem a flor fluir no ar, flagrou o flow? fugaz
a brisa entra, anoiteceu mas não esfriou,
um clã de gatos no quintal, atrás dos ratos, coisa e tal,
mas a empreitada não vingou
eu sei, e você sabe, que a solidão não cabe
num link que se clica, numa página que se abre
botar o pé na rua, dar um salve pra lua
vou na fé que descomplica, explica-me o sabre
e os perigos das vias, das vidas vadias, das vidas vazias
minhas sombrias, minhas alegrias, sei que nunca é tarde
pro sonho
que pode ser medonho ou vir sem provocar alarde
a história não tem fim, nem cabeça ou pé
só quem sonha acordado tá ligado, né?!
O olho vê a via láctea, enquanto mama um cafuné
a viagem é intergaláctica, deu insônia na geral,
bandidagem tá feliz, por um triz, passou mal
vem no vento, inventa na janela e a roupa seca no varal
mas sossega irmão, que o sono do patrão também é leve
pensamento lá na frente pra que o padrão se eleve
lua cheia no poente, o sol já vai surgir
a vida é linda mas é breve
escreve, escrevo, escriba não só grafa greve
escolhe o que escuta e grava aquilo o que lhe serve.

Essa foi a última canção que compus no ano passado, e a passagem final faz referência ao clássico poema do Augusto de Campos, Greve, onde apresento uma espécie de personagem contemporâneo, inspirado no hip-hop, que não se adéqua aos programas e leituras de uma “esquerda mais tradicional”. Acontece que o ano se iniciou como eu relatei no início deste texto, e me vi obrigado a “refazer” meu jogo de rima (greve, serve), invertendo o sentido que propus com O Que lhe Serve. O mote de Passa Reto, Beto Richa elaborei durante a primeira passeata de repúdio ao pacote proposto por Richa, aqui em Londrina, enquanto caminhava com meus filhos e escutava buzinadas de carros de luxo, no centro da cidade.

Passa Reto, Beto Richa (João de Carvalho)
É richa,
se espicha,
passa reto,
Beto Richa!

acha que o povo não se licha?
capricha
no pacote do palácio
é fácil
montar na motoca e passear relaxa, né?
se acha! tá louco!
Paraná vai parar e eu acho pouco!
cê acha? tô louco!
Paraná vai para e vai ser pouco!

É richa,
se espicha,
passa reto,
Beto Richa!

não joga a educação no lixo
que nóiz
na rua é que nem bixo
feroz
pique montado num elefante, Ganesh, né?
um flash. tá certo!
Paranauê no Paraná, eu tô esperto.
vê se se mexe! tá perto!
Paranauê no Paraná pra tá liberto.
Ei, Beto
nada agora lhe serve
a não ser a palavra greve!



Depois dessa canção (foi por causa dela que me chamaram pra tocar na recepção aos estudantes), apresentei pela primeira vez, ainda lendo a letra que eu não sabia de cor, a canção Mais que Mascarado, que comecei a esboçar durante o carnaval deste ano. E, enquanto nosso governador passeava em seu recesso, fingindo-se de morto, professores acampavam na Assembleia Legislativa do Paraná. Outro professor da UEL, Sílvio Demétrio, escreveu um texto muito lúcido sobre cavalos e governantes. Vale a pena ler aqui. A canção é inspirada na versão da Nina Simone para Sinnerman, e a gravação é provisória (desafinada e com erros de dicção, inclusive), e contou com um time composto só por grevistas (alunos e professores da UEL) para fazer um registro ainda na segunda do dia 23. Nesse sentido é uma canção de apoio à greve sim, como foi compartilhada por alguns amigos, mas não só. A questão central da escravidão vinculada à geografia das cidades não está na pauta da vez no Paraná. Nem a regulamentação da mídia. Muito menos uma reinvenção dos nossos hábitos cotidianos que são insustentáveis. Mas estão sim, dentro do saco de lixo do qual escorre o chorume da vez.

Mais que Mascarado (J. C.)

Ah pecador
cuidado com os cavalos
esses que só se movem em L
não são livres
e trabalham para o rei...

Liberta-te borboleta
desse sonhador
confuso...

A vida passa pelo vidro
comprimido do seu banco vê o show
e tudo passa tão ligeiro
passageiro quando viu trem já chegou
e tem um trecho do caminho
que a pessoa ainda tem que ir à pé
nunca é bom estar sozinho
não tem jeito a gente vai na fé
só pensa em chegar em casa
tomar banho comer algo e relaxar
mas sabe que à esta altura
relax mesmo é na cama desmontar
no outro dia a casca é dura
tem que encarar a cara feia do patrão
as distâncias da cidade
são estratégias pra esconder a escravidão.

Meu caro, o transporte é caro
caro para caralho
vampiro no motor do carro
estaca colar de alho
tranca o caminho do pobre que rala
em frete à TV no sofá da sala.

E a peregrinação continua
sangrando no rio
fervendo no mar
sei lá...

Cê sabe, a vida é uma só
cada um cuida da sua e fechô
todos dando o seu melhor
e entupindo com algo mais a sua dor
mais um dia de trabalho
e tamo num tabuleiro de xadrez
o ponteiro tá girando
e esse jogo necessita lucidez
existem possibilidades
algumas nos levam ao bem outras nem pá
mas a pergunta mais difícil
de responder é quem sou eu nesse lugar
dessas peças tão pequenas
não sou peão não o bispo e nem o rei
eu tô mais pra um palhaço
que chegou para chutar a sua lei.

Meu truta, o transporte é treta
então vou de bicicleta
nem casa e nem lambreta
esporte pique de atleta
tirando uma onda com a brisa na cara
pedala, pedala, pedala, não para.

Mas pro plano tá completo
outros dados ainda faltam na equação
ninguém sobe solitário
e o meu clã é a tormenta do dragão
desses que apavoram a lua
dos poetas que habitam a Babilon
é que no meio dos felizes
tem sempre um coro que come fora do tom
não precisa ser vidente
para ver o que irá acontecer
se você não rompe o ciclo
uma hora o ciclo rompe com você
na tenção o clima é quente
prest'enção há uma multidão ali na frente
mente descaradamente
a lente oficial e ôcê tão crente.

Mano, o transporte é um cano
apontado pra sua amada
PM tá preparada
inspirada pra dá porrada
cara cairá a máscara do
cidadão de bem mais que mascarado.



As duas últimas canções que cantei na primeira Manifestança são canções tradicionais, o que permitiu arriscarmos um coro que ficou bonito. A penúltima eu conheci com meu amigo/aluno Rafael de Barros, pois faz parte de seu espetáculo de palhaço chamado El General. Se trata de Bella Ciao, uma canção italiana cantada no mundo inteiro como um hino contra o fascismo. Na Grécia cantaram esta canção quando o SYRIZA, partido de extrema esquerda que ganhou a disputa presidencial, uma resposta ao desgoverno que tentou vir com esse papo de austeridade pra cima dos gregos. A canção, na versão que ficou conhecia durante a Segunda Guerra Mundial, conta de um guerrilheiro se despedindo de sua mulher, disposto a sacrificar a própria vida para garantir a liberdade dos seus.

Bella Ciao
Una mattina mi son svegliato,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi son svegliato,
ed ho trovato l'invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.

E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.

E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna,
sotto l'ombra di un bel fior.

E le genti che passeranno,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E le genti che passeranno,
Mi diranno «Che bel fior!»

«È questo il fiore del partigiano»,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
«È questo il fiore del partigiano,
morto per la libertà!



E a pra terminar, depois deste passeio por cantos revolucionários do mundo, chamei meu mano Caetano Zaganini, do grupo Osso e Dente (também composto por ex. estudantes da UEL), pra cantar comigo uma cançãozinha infantil. Peixinhos do Mar. Lembrei do texto do Betto de La Santa onde ele coloca esta situação do Paraná em perspectiva global e resgata o significado da expressão “paraná”, que seria braço de mar. Faz um tempo já que entoo esta canção como uma espécie de hino pirata com meus filhos.

Peixinhos do Mar
Quem te ensinou a nadar?
Quem te ensinou a nadar?
Quem te ensinou a nadar foi, foi, marinheiro,
foi os peixinhos do mar.

Ei nóiz,
que viemos de outras terras, de outro mar
temos pólvora, chumbo e bala
nós queremos é guerrear!


Bem, depois da minha participação teve uma super apresentação do grupo Osso e Dente, com canções extremamente alinhadas com o presente momento. O Caetano tá em Curitiba acampado de novo e a greve continua! As atividades continuam intensas aqui também, e domingo terá uma edição especial do Quizomba em apoio às greves do estado. Que a consciência coletiva possa se dar conta do tamanho do saco de lixo que temos em nossa sala, e que nos livremos dele logo, pois o ponteiro tá girando e só limpar o chorume não resolverá nosso problema.