terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Nocivo Shomon: na polifonia da revolução

por João de Carvalho


No sábado do dia 7 de dezembro, será realizado o 3º Londrina RAPFest. Este evento vem quase como um contrapeso do que foi o show do Criolo em Londrina. Apesar de inesquecível – o show do Criolo é realmente de tirar o fôlego – este evento amargou uma certa “incoerência” ao cobrar 50 reais (com área vip por 80!!!) em um show de rap.

Neste show, DJ Dandan levou um papo com a plateia (heterogênea!) lembrando que já estivera em Londrina há 15 anos atrás, ministrando uma oficina de hip-hop. Ainda agradeceu a plateia, divulgou a banquinha de produtos do grupo (um dado importante deste novo panorama de produção cultural), e concluiu dizendo que era a comunidade quem era responsável pelo rap local. Frisando, enfim, a necessidade do apoio à cena do hip-hop da cidade.

O argumento central deste texto é enfatizar, a todos aqueles que foram no show do Criolo, a importância de se ir ao evento que irá ocorrer neste sábado.

Fato é que o povo da “A Firma Ativa” - que tem o Thales UZI, um dos articuladores mais importantes da cena do rap londrinense - está realizando um evento com até mais atrações (e com mais de artistas locais!) só por 15 reais. O evento promete ser uma celebração “mais de raiz”. Em outras palavras, muito mais hip-hop, menos classe média. É o que promete, tendo em vista que a principal atração deste 3º FestRap é justamente a polêmica figura de Nocivo Shomon.

O argumento central deste texto é enfatizar, a todos aqueles que foram no show do Criolo, a importância de se ir ao evento que irá ocorrer neste sábado. Para isso, penso que seria legal começar sondando o conceito de polifonia de Bakhtin, e como este princípio está presente na cultura hip-hop. E, sem desejar fomentar as desavenças do movimento, quero me valer do exemplo do conflito entre os rap's “Ooorra” e “A Rua é Quem?”, respectivamente do Emicida e do Nocivo Shomon, para evidenciar a complexidade deste ice-berg com o qual o Titanic da classe média colidiu.

Polifonia – (se estiver sem tempo, pula essa parte, outra hora vc volta e lê)


Ao se debruçar sobre a obra de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin acaba elaborando o conceito de polifonia aplicada ao gênero de romance criado por seu conterrâneo. Bakhtin percebe que nos romances de Dostoiévski os personagens possuem vozes discordantes e contraditórias. No romance polifônico existem no mínimo dois heróis (PIRES, 2010. pg.70), que lutam por pontos de vista e juízos de valor distintos.

O gênero polifônico se contrapõe ao monofônico (onde uma voz domina as outras vozes) e retrata os conflitos dos embates sociais, sempre de maneira dialógica. Segundo Schnaideman (2005, p. 15), no pensamento de Bakhtin, a importância da multiplicidade de vozes é uma afirmação democrática e antiautoritária.

A polifonia, e toda a noção de dialogismo, funciona no rap de maneira profundamente ligada à sua perspectiva política. Assumir as contradições, as múltiplas vozes e múltiplos pontos de vista, é uma postura de grande coerência ideológica e estética dos artistas do movimento hip-hop.

Muitas das ideias de Bakthin já foram utilizadas para explicar e analisar a cultura hip hop. Dialogismo, intertextualidade, interdiscurssividade e polifonia são conceitos corriqueiros na literatura que busca dar luz a esta linguagem de resistência cultural das ruas. Nas palavras de Rociclei Silva (2011, p. 52), “O hip hop se caracteriza por sua diversidade de vozes e linguagens que se chocam constituindo uma verdadeira arena de conflitos, mas que nenhuma se sobrepõe à outra.”.

O grafite, o break e o rap são as principais frentes de combate artísticas do movimento. Mas não podemos esquecer que o movimento também abrange a moda, as gírias, o gestual corporal e, mais recentemente, a criação de uma literatura (escrita) local, a militância e organização em espaços virtuais (através de blog's, sites, e canais de distribuição de música), a criação de experiências em vídeo (não só através da ocupação de “espaços públicos” de informação, com programas em grandes emissoras como a TV Cultura e a MTV, mas também através da produção independente de video-clipes e “vídeos documentários” sobre a movimentação da cena) e a organização dos sempre tradicionais bailes de rap, onde os agentes produtores dessa cultura são ao mesmo tempo público e artistas.

Só o rap já possui em si duas frentes interdependentes de atuação que, como o próprio nome já faz referência, se relacionam aos aspectos rítmicos e poéticos do discurso dessa linguagem cancional. Em outras palavras, temos nas funções de DJ (o tocador de discos) e MC (o mestre de cerimônias) um constante diálogo em que os atores desenvolvem não uma única ideia, mas suas várias ideias, associações e pontos de vista sobre determinado tema.

É muito comum existirem coletivos de rap, grupos compostos por dois ou mais MC's, que dividem a batida para exporem seus relatos. Os Racionais MC's, por exemplo, que constituem o grupo de maior e mais duradoura visibilidade do cenário do rap nacional, é composto por Mano Brown, Ice Blue e Edy Rock nos vocais e KL Jay responsável pelos toca discos. Isso, associado à uma postura frente às mídias, à imprensa e ao público, dilui a ideia de super star ou de ícone pop, ao contrário, torna horizontal a relação de poder e valor de cada um dos membros.

A polifonia, e toda a noção de dialogismo, funciona no rap de maneira profundamente ligada à sua perspectiva política. Assumir as contradições, as múltiplas vozes e múltiplos pontos de vista, é uma postura de grande coerência ideológica e estética dos artistas do movimento hip-hop.

As Vozes

Como eu disse antes, minha mais sincera intenção não é aumentar o clima de “treta” dentro do hip-hop, mas, partir de uma reflexão atenta sobre um dos conflitos de maior evidência dentro do movimento. Resumidamente, pra quem está chegando agora neste debate, existe uma forte resistência à “popularização” (talvez devêssemos chamar de “classemediatização”) do rap atual. Esta resistência vem principalmente dos produtores (MC's e DJ) do rap undergroaund, mas não só, é comum também vermos esta mesma postura em acadêmicos estudiosos – ou simplesmente apreciadores – do rap. Para quem já estava envolvido com o hip-hop desde antes destes 5 ou 6 últimos anos, esta nova onda do rap parece só mais um modismo, que desvirtua a natureza combativa e de contracultura proposta pelo movimento. Existe até um apelido pejorativo dado a esta “nova cara” do movimento: “rap modinha”.



Talvez o exemplo mais bem acabado que este conflito gerou esteja na “treta” entre o Emicida e o Nocivo Shomon. Não cabe aqui empreender uma busca para averiguar quem começou desrespeitando quem – até mesmo porque os insultos são básicos dentro dos conflitos de freestyle, do qual ambos participaram diversas vezes. Esta querela lembra em muito a que aconteceu entre Wilson Batista e Noel Rosa, onde Wilson era o “ideal de malandro” e Noel era um branquinho estudante de medicina. Até mesmo a fase de afirmação nacional que o samba vivia durante aquele período é comparável à atual fase do rap, que vem – definitivamente – se consolidando dentro da tradição da canção brasileira. Assim como o sambista, na época de Noel, sabia que estava lidando com um monumento cultural de extremo valor, e que, não sendo invenção sua, ele deveria ter responsabilidade por esta cultura que floresceu à margem da sociedade, o rapper de hoje sabe o legado que as primeiras gerações do hip-hop nacional lutaram para construir, e pesa sob seus passos a tensão de qual caminho seguir.

Mas qual seria exatamente esta crítica feita ao “rap modinha”?

É importante que pensemos as canções escolhidas para esta breve análise, como prismas pelo qual vislumbraremos a polifonia do hip-hop. Um raio-X – localizado – do movimento. E, em virtude deste objetivo, é fundamental comentarmos também sobre outras obras e outros artistas.

Bem, o Emicida lançou em 2009 sua primeira mixtape intitulada “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe...”. A última faixa deste trabalho é a canção – já disse em post anterior que pra mim rap é canção - “Ooorra...”, em que o MC se defende de ataques que sofria. Este rap não é uma “diss”, como é chamada uma obra de discórdia e afronta endereçada à um artista ou grupo de pessoas em específico. Ou seja, por mais que tenhamos a tentação de escutar este rap como sendo endereçado ao Nocivo Shomon, que explicitamente a rebateu com “A rua é quem?”, devemos ter em mente que se trata de uma obra de afirmação do artista frente à um padrão de críticas que ele vinha – e vem – sofrendo.

Mas qual seria exatamente esta crítica feita ao “rap modinha”? Tudo começa com a afirmação que a turma do Emicida (com o Projota, Kamau, Rashid e outros) tomaram para si como slogan: “a rua é nóis”. Existem muitas culturas dentro do hip-hop. Só para citar um exemplo significativo desta “divisão”, existe o grafite – que já vem sendo legitimado, dentre o restante da sociedade, como uma importante manifestação artística – mas existe também a pichação – que ainda é vista como puro vandalismo. É a polifonia do movimento. É isso que faz com que ele não se cristalize. Bem, voltando às críticas ao “rap modinha”, existem ataques de ordem pessoal que pretendem deslegitimar os artistas mencionados como justos representantes da voz da periferia.



É neste sentido que o texto do Emicida será desenvolvido, buscando legitimar sua integração dentro da realidade da periferia, demonstrar quais os motivos que unem seu grupo (sua panela, segundo os que criticam), e ainda – principalmente – argumentar contra a clássica afronta do “se vendeu”. O primeiro fato que Emicida se reporta para legitimar sua voz como representante de um contexto socialmente carente é sua história familiar, em que seu pai morreu quando ele ainda era criança, em decorrência do alcoolismo. Esse fato aparece também em outras canções, como por exemplo em “Crisântemo”, uma verdadeira obra prima que merece um post só para analisá-la. A primeira estrofe é dedicada somente a este fato, e Emicida o utiliza como um aceno para chamar a atenção dos “muleques” que não respeitam os pais:

“Vendo os muleques ai, com pai mãe do lado e nem respeita
Deviam ser por um dia o que eu sou a vinte anos
Pra ve se 'cêis ia' tá na de trocar os coroa pelos manos”

Somente ao final da obra é que surgem os versos que parecem endereçados ao Nocivo Shomon:

“E o justo, então antes de criticar quem 'cê' vê trampar
Cala boca e pensa, quantas história 'cê' tem pra contar
Falar que ao dizer ''a rua é nóiz'' pago de dono da rua
Desculpa, eu vivo isso e a incerteza é sua
Se você não se sente dono dela, xiu não fode!
E antes de escrever um rap, me liga e pergunta se pode.”

Utilizando um pensamento do José Miguel Wisnik, eu diria que o Nocivo é mais cívico, enquanto o Emicida é mais malandro.

Vamos deixar um pouco o exemplo do Emicida e escutar “A Rua é Quem”, do Nocivo, que está presente em seu primeiro disco intitulado “Assim que eu sigo”, lançada também em 2009. Diferente da “estratégia” do Emicida, de contar sua história para legitimar sua atuação dentro do rap, Shomon parte para a ofensiva. Com uma rápida passagem pela sua vida privada, citando suas filhas, Nocivo se apoia muito mais em criticar a postura do outro rapper do que de construir uma “defesa” sua.



São muitas frases de efeito. Muito do clima de disputa de MC's, o lance de ridicularizar o adversário com tiradas e ofensas, está presente em A Rua é Quem. A crítica mais constante, que aparece sob várias formas durante a letra, é a de que Emicida mente sobre sua vida, e que as histórias são falsas para agradar e vender. Chega a ser engraçado para quem é de fora do rap ver uma questão dessa sendo tratada com tanta paixão, isso porque a poesia é livre para forjar a realidade que quiser. Pessoa já dizia que o poeta é um fingidor, e o Leminsk dizia que o primeiro personagem que um escritor cria é ele mesmo. Mas, dentro do hip-hop, esta coerência entre o dizer e o fazer é algo importante sim, e não devemos de forma alguma menosprezar este fato.

Acontece que muito mais revelador do que as letras, pra mim, é o próprio som. Enquanto a base do Emicida tem um balanço mais leve, ocasionado pelo ataque do grave (da bateria eletrônica) no contra do segundo tempo, a base do Nocivo é mais reta, mais pesada, pois cai sempre nos tempos fortes. Isso é um dado que parece muito sutil mas que na verdade determina muito do caráter geral que estas duas canções assumem. A poética do Nocivo é sempre mais direta, mais agressiva, mais máscula, enquanto a do Emicida é mais sutil, mais feminina. Utilizando um pensamento do José Miguel Wisnik, eu diria que o Nocivo é mais cívico, enquanto o Emicida é mais malandro.

Nocivo está cada vez mais engajado dentro do espaço que ele reivindicou – fora da grande mídia – e Emicida está com um poder de abrir fronteiras cada vez mais sólido.

Isso está presente também no “flow” de cada um. Os versos do Emicida são bem mais assimétricos, o que lhe garante uma maior variedade de fraseado e uma proximidade maior com a fala, enquanto o Nocivo constrói uma estrutura poética feita basicamente de dísticos razoávelmente simétricos. Em termos da Semiótica da Canção, poderíamos dizer que o Emicida preza pela figurativização enquanto o Nocivo pela tematização, ou seja, o Emicida parece realmente estar falando de si e o Shomon enumerando os problemas do adverssário.

Por um lado o “beat” do Emicida tem mais variação de textura – no refrão entra uma guitarra, que muda consideravelmente a atmosfera – garantindo-lhe uma maior variedade sonora, por outro, o som do Shomom é muito mais monótono – até o groove que ele recortou para fazer de base só tem um acorde, de Mi menor, que não se altera até o final do refrão. Acontece que dentro dessa monotonia que o Shomon cria, o final se torna surpreendente. O fragmento que se repete como base é libertado de seu ciclo maquínico no final da música – nos 5:05 – e coincide com o final da frase “ser fudido não é orgulho pra ninguém não, mano, orgulho é nóis sair da lama, vamo evoluir, vamo pensar grande, porque enquanto nóis pensar pequeno nóis não vai conquistar nada de grandioso...”.

Vale desvendar um pouco ainda o flow do Nocivo. Reparem que durante a primeira estrofe sempre rolam rimas nos finais de duas em duas frases. Mas acontece uma rima de aproveitamento antes de se passar para o próximo dístico. Acontece um esquema mais ou menos assim:

----------a
----------a
----a-----b
-----------b
----b-----c
----------c
----c-----d
----------d
(e assim por diante)

Vejam:

“A verdade tá de volta e idiota não vai conter
Bico que se abala é uma bala pra quem se cala bater
Não vim aqui dizer o que a massa deseja ouvir
Vim pra fazer império de pela saco cair
E ver os rato fugir e abandonar o navio
Cansei de festa lotada pra ouvir rap vazio
Meu desafio não é competição de MC
É lutar a cada dia pra ver minhas filha sorrir
Na sede de demolir canta rima repetida
Tu conta muita história pra quem tem tão pouca vida
Sempre a mesma que ideia que só você sofreu
Eu lutei muito pelo rap pra tu dizer que ele é teu
Aí fudeu, os clone no microfone é foda
No palco manda mentira os puto grita e vira moda
Uns cantam por amor outros só pra fazer nome
Treta é botar muleque pra fazer papel de homem
Inevitável travar guerra nessa terra de ateus
Pra calar falso profeta que pensa que virou Deus
Mando o barulho do bagulho eu também sei
Menino tu não é do morro e nunca vai virar rei
Cuidado com o que escreve, deve ter mais cautela
Grita que é da rua, nunca será a favela
Nocivo atropela martela os pela que amarela na cena
Teu cache é pesado mas teu rap é peso pena.”

Bem, as duas canções são bem interessantes. A do Emicida tem a vantagem de conseguir viver sem a do Nocivo, mas nem por isso a deste é inferior. Devemos lembrar, ainda, que estas obras foram compostas em 2009, e muita água rolou de lá pra cá, inclusive outros sons e clipes de troca de críticas. A postura de ambos artistas se tornou mais madura, e a crítica mutua fez o nível de auto exigência (já que um está pouco se fudendo pro outro) se elevar. Nocivo está cada vez mais engajado dentro do espaço que ele reivindicou – fora da grande mídia – e Emicida está com um poder de abrir fronteiras cada vez mais sólido.


O papel da geração mais velha foi – e está sendo – fundamental para clarear as relações ambíguas do movimento. A participação do Mano Brow no show do Criolo e do Emicida ao vivo e a participação do Edy Rock no Caldeirão do Huck não são pouca coisa, e fizeram muitos repensarem seus preconceitos e perceberem o momento estratégico que o hip-hop vive. O diálogo com os meios de produção mais comerciais elevaram muito a qualidade da produção dos novos trabalhos, e isso é um dos maiores trunfos desta caminhada. A ampliação de público não deve ser entendida somente como “estamos juntando um din”, mas como estamos levando a consciência que desenvolvemos nas quebradas para o centro da cidade! Para mim parece muito sintomático que as passeatas que ocorreram este ano – onde a maior parte eram estudantes da classe média – tenha tido se utilizado de palavras de ideias que estavam presentes no discurso do Criolo na praça Rosveld. Sobre isso eu já escrevi aqui.

A acusação de que o trabalho dos novos MC's está ficando sem conteúdo não procede. Existem muitos conteúdos. E o trabalho de MC's como Kamau e Emicida possui uma enorme importância pois aponta novos rumos para o movimento. Agora, novos rumos é uma expressão complicada, pois não quer dizer de forma alguma que todos devam seguir este caminho, ou que este é o melhor caminho. Quero dizer, com esta expressão, que são caminhos que ainda não foram devidamente trilhados, enquanto o trabalho de base, mais próximo das indignações da periferia, este já tem sido feito desde muito tempo.

Pra mim – e de novo quero frisar que é uma opinião de alguém que chegou não faz muito tempo dentro deste repertório – o grande lance do hip-hop é essa possibilidade de coexistência destas perspectivas. Qualquer uma das duas levadas ao extremo, apagando a voz da outra, é problemática. A perspectiva do Shomon é problemática pois não estabelece um diálogo com o que está além dos muros do preconceito, tornando o gueto cada vez mais gueto, onde o ideal – aqui creio que todos concordariam – seria que não houvesse mais essa divisão (pra não falar guerra) de classes. (“Desigualdade traz tristeza”, Criolo). Já a perspectiva do Emicida é problemática pois facilmente se cai em um mar de ilusões de egos inflados (“Prest'enção que o sucesso em excesso é cão”, Mano Brow), e em uma perigosa confiança na “fé de vencer”.

Por sorte essa rixa que aconteceu parece ter vacinado tanto o Emicida quanto o Shomon. No último trabalho do Emicida ele problematiza esta questão da falsidade que é a vida de shows (em Hoje Cedo), enquanto lemos no facebook (29/11/2013) o Nocivo Shomon dizer:

“e outra fita;por eu criticar as ideias do emicida num som não tira o que ele tambem fez e faz de bom pela cultura em geral,depois dele que uma pa de muleque aprendeu como ser sua própria produtora,a criar suas capinhas de cd a mão e acreditar na música,muito mano conheceu primeiro os free dele pra depois conhecer o rap em geral,e eu criticar as ideias de alguem é diferente de dizer que esse alguém não tem sua importancia,e queira ou não o maluco é bom nos free e tem talento e vontade e ta correndo coisa que muitos ae nunca fizeram que é trampar,eu não gostar da música dele ou das ideias é outra fita,então não tire suas conclusões sem ouvir da minha boca,sou maduro e sei a importancia do papel de cada um!!!!!!critiquei e critico pra ver melhoras na nossa cultura,não critiquei por criticar ou por ódio!!!!!!!!”


Bem, agora falta essa consciência chegar ao público, que, de um modo geral, ainda está alimentando essa rivalidade pelo que ela tem de ruim para o movimento. Mas espero que seja uma questão de tempo, pois seria uma injustiça muito grande para com o talento do Nocivo sempre colocá-lo como o rival do Emicida, além de representar um enfraquecimento do sentimento de coletividade tão caro à revolução que o hip-hop almeja.


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Um papo com Siba

João de Carvalho

"... não existe vida sem a morte."

No dia 26 de outubro tive a oportunidade de fazer uma pequena entrevista com o Siba, em sua passagem por Londrina. Foi a primeira vez que me atrevi a "entrevistar" alguém, então não esperem um desempenho lá grandes coisas. Assistindo ao vídeo que fizemos, percebi que minha ansiedade em comunicar um monte de ideias, somado ao fato do natural constrangimento frente à câmera (e ao Siba), e o angustiante grave que vinha da passagem de som, me deixaram cômico. Mas blz. Eu supero.

Devo agradecer à Patrícia Zanin (da rádio UEL FM) por ter agendado nosso papo. No dia do show, mais precisamente durante a passagem de som no teatro, Siba concedeu uma série de entrevistas. Foram 3 antes de nos atender, e em cada uma ele foi deixando a marca de seu raciocínio claro e profundo. Nestes papos que precederam nosso papo, Siba esclareceu sua relação com a cultura popular, dizendo-se ((com as minhas palavras)) muito mais um agraciado do que um agraciador. Ainda deu uma aula sobre suas referências de guitarra, de Hendrix a Franco (guitarrista congolês), e esclareceu o que é turnê e o que são shows estratégicos de ampliação de público, passando na prova dos nove da humildade.

"... a não ser nessa vidinha, classe média, confortável, que a gente leva achando que tá livre de tudo, quando na verdade, ela tá aí, ó, a morte tá sempre presente mesmo sem a gente ver, acho essa consciência muito importante..."

E para quem está chegando por agora no repertório desse pernambucano (seja bem vind@! ), eu recomendo assistir ao teaser do documentário Nos Balés da Tormenta. Tem também o Fuloresta do Samba, que é de lei. Seria legal também ler o texto que o próprio Siba redigiu apresentando o novo trabalho. Vale a pena fazer isso, mas dá pra continuar lendo... ;)

Enfim, chegou a hora do nosso papo. Eu tentei fazer algumas perguntas, todas meio confusas, talvez você tenha que assistir mais de uma vez pra entender o que eu estava pensando, e não é culpa sua... mas, é o que tem pra hj. O Siba foi super compreensivo e deu umas respostas massas pra caramba! Por isso vale assistir ao vídeo, pois entramos em alguns assuntos que normalmente não podemos desenvolver em conversas rápidas. Neste vídeo-documento você pode conferir Siba tecendo algumas reflexões sobre a vida e a morte, sobre o sagrado, sobre o artesanato cancional, sobre muita coisa... 

E ao fim do vídeo vocês podem conferir meu momento fã. Tomei coragem e toquei a versão que fiz de Qasida. Uma singela homenagem que tem muito a ver com o rumo que as perguntas tomaram. De fato, muito da interpretação que tenho sobre a obra do Siba está relacionada com um projeção que faço, amplamente apoiada no repertório que montei para dar aula de História da Canção (que ministrei este ano no Festival de Música de Londrina).


vídeo entrevista


Clicaqui, e assista agora o vídeo que o Mioto fez especialmente para nosso blog! Valeu mesmo, meu mano! E valeu também ao Alexandre Ficagna e ao Fagner Bruno, respectivamente pelo som e câmera... todo mundo com a mais pura camaradagem! Massa mesmo, gente!

A verdade é que fiquei com vontade de proseá muito mais... Faltou refinar mais sobre como Siba fez a aproximação com a música congolesa e afegã, por exemplo. Algumas das coisas que percebo como paralelo com a música árabe - de um modo bem geral - é a utilização de longas seções instrumentais, as mudanças de andamento e o uso de compassos com métrica alternada. E, como paralelo com a música do congo, eu poderia lembrar da utilização da marimba (ele mesmo disse em algum lugar, a marimba entraria na banda para remeter ao som da Kalimba) - Mulatu Atatke toca marimba - e do uso constante da dobra de sexta nos solos de guitarra (no começo eu achava que isto se remetia mais à uma inversão das terças caipiras das violas) e do suingue sincopado dos acordes nas cordas mais agudas. Gostaria de perguntar também, sobre como foi o processo de busca pela sonoridade do disco, a utilização de tuba e marimba em meio às guitarras dele e de Catatau. Mas, tudo isso fica pra próxima... ou eu organizo melhor e faço por e-mail... mas tá, isso é outro papo.

Espero que tenham gostado.
Até!

ps.: tem um vídeo que eu recomendo...


Este vídeo é muito legal, e apresenta cenas do ensaio da banda que veio à Londrina. Serve como amostra do show que vem sofrendo mutações desde seu nascimento. Lembro que eu me toquei do tamanho da delicadeza de Bravura e Brilho durante o show... percebam - aos 5'24" do vídeo acima - que contraponto mais inusitado que o teclado e o assovio fazem com a melodia da voz (isso junto com toda a textura que muda e fica mais em staccatto)... este timbre de assovio, a sonoridade desta seção, tem uma espessura robusta, grávida de significados! Com todo respeito, precisa de muita cera nos ouvidos para não escutar uma referência ao universo infantil nesta passagem.

Agora acabou mesmo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Criolo em Londrina, o que esperar?

João de Carvalho


Criolo foi um dos estopins desta nova "boa onda" - visibilidade - do rap nacional. O seu segundo disco, o Nó na Orelha, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, levou a poética do Kleber Cavalcante, filho da Dona Vilani, para além da cena do hip hop nacional. Vocês já devem conhecer um tanto desta história...

O primeiro disco do Criolo, quando ainda assinava Criolo Doido, chama-se Ainda há Tempo e pode ser conferido aqui

É importante escutar o "Ainda há Tempo" para se ter uma ideia mais clara do que foi o "Nó na Orelha". Podemos dizer que muitas das coisas que caracterizam a poética do Criolo em seu segundo disco já estão presentes neste primeiro trabalho. Mas o que seriam estas "coisas que caracterizam a poética"? Aí não é tão fácil de dizer assim rápido... mas penso que o primeiro ponto que grita nisso que chamei de poética do Criolo é este apelo ao amor, como fica claro tanto em Ainda há Tempo - a canção - quanto em Não Existe Amor em SP.

Poderíamos pensar que o manejo das palavras vai ficando, do primeiro álbum para o segundo, mais abstrato. É evidente que o uso de metáforas e de um discurso mais subjetivo é uma das marcas mais fortes do Nó na Orelha. Mas é preciso lembrar que este segundo álbum é um registro de canções (pra mim rap é canção, mas é importante frisar que o próprio Criolo faz esta distinção de termos) antigas, que eram conhecidas somente pelos amigos próximos que ficavam com as "orelhas cheias de nós" depois de escutar o Klébinho cantar. Vejam que os títulos dos álbuns refletem com precisão esta diferença de propósito, enquanto um se engaja com mais afinco com os problemas emergenciais da comunidade o outro se destina (entre outras coisas) à um aprimoramento da consciência e do exercício lógico/poético. Estas diferenças são tendencias gerais, e não distritos isolados um do outro.

Nos shows que Criolo registrou ao vivo - no Circo Voador e com o Emicida - rolou um resgate natural de algumas canções do primeiro disco. Ainda que a figura pública - repercutida pela imprensa - do Criolo tenha se mostrado mais pelo seu lado "mais amor", o MC inconformado sempre esteve presente.

Mas a fase Nó na Orelha acabou. Agora Criolo vem apresentar um novo show, mais próximo da estética de base do hip hop. DJ Dandan, por exemplo, assume o toca discos. A banda está mais compacta, e sem os metais coordenados pelo Thiago França, a guitarra de Guilherme Held ganha outro peso. Até mesmo a postura (e vestimentas) do Criolo parecem frisar a natureza deste novo momento, onde conquistado um novo público, é preciso reforçar a natureza combativa de sua arte. Me lembro de uma das inúmeras entrevistas que eu vi do Criolo, em que ele dizia que um MC não faz rap por falta de escolha, e sim pq é preciso fazer!

Vale a pena conferir estes dois vídeos que se seguem. O primeiro é uma chamada para o show de estreia do novo trabalho, o Duas de Cinco, e o segundo é a canção ao vivo (não consegui colocar pra assistir aqui... ???).



Bem, como este é um blog de caráter educacional, vou comentar um pouco sobre algumas características desta nova canção, a Duas de Cinco, pois trabalhei ela com alguns alunos de instrumento - não do curso "A Canção e Seus Sentidos".

Antes de mais nada é preciso escutar com calma a canção original de Rodrigo Campos, a Califórnia Azul.


Rodrigo Campos consegue criar um texto cheio de sugestões, mas com buracos imensos, onde nos convoca à uma escuta ativa. Em nenhum momento aparece uma cena clara. Mas são imagens onde podemos localizar uma intriga entre dois jovens - o crime foi consumado? (é só uma potência para o mal, uma energia deslocada... pode haver salvação... "vamos resgatar", Criolo clama em Ainda há Tempo...) - tráfico, poder, autoestima... 


"Não tava lá fazendo cêra
ele não tá de brincadeira
garoto se jogou no asfalto
carregado na canseira...

Deixou a mina na calçada
como é bonita e safada
fica me olhando desse jeito
e eu não posso fazer nada...

Já dei plantão na rua dela
namorado na favela
garoto que já tem cartaz
e a mina dando trela...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou...


Se eu fosse um cara diferente
chegava junto de repente
beijava a boca e tudo mais
pelo tesão que a gente sente...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou..."

Perdão colocar a letra inteira aqui pra vocês, mas senti que era importante percebermos esta escrita do Rodrigo Campos, bem ele, que tal como Criolo, também cresceu na periferia de São Paulo. Esta canção é uma crônica que registra o drama de um jovem sujeito ao crime, motivado por aflições humanas básicas... um desnudamento ao ponto de revelar a fragilidade do ser, o que transcende o limite da luta de classes... um discurso imagético, com referências locais e de época (jaco califórnia azul é uma jaqueta azul, que era o sonho de consumo dos jovens da década de 1980; vapor é apelido - antigo - para os jovens e crianças trabalhadores do tráfico de droga)...  

A parte musical também é muito condizente com toda esta proposta narrativa. O violão de Campos é muito simples (atenção professores de violão, esta canção é uma ótima pedida para se trabalhar com os alunos!), mas de forma alguma é simplório. Temos uma harmonia modal em Em, composta por um movimento dissonante nos baixos... este violão acaba sugerindo uma atmosfera de suspense, sensação reforçada pela construção da letra... tudo é muito simples, mas muito contundente. 

A forma da canção também traz informação, pois articula o texto de maneira assimétrica, destacando o sentido da última estrofe. Esta configuração formal, este recorte do tempo, sublinha a dimensão do tesão (força tipicamente jovem) e da insegurança frente à um grupo (conflito tipicamente jovem). Os momentos instrumentais da canção valorizam as conexões subjetivas desencadeadas pelo texto.  O trabalho de textura e sonoridade desta canção é fantástico - tb, é o Kiko Dinucci aí! 

Criolo disse que quando acabou de escrever a primeira parte de Duas de Cinco, ele já sabia que gostaria de ter como refrão a canção de Rodrigo Campos. De fato, muitas das características estilísticas que apontei no Rodrigo são aproveitadas por Criolo. Vejamos:


(sample de Califórnia Azul)

É o cão, é o cânhamo, é o desamor/ é o canhão na boca de quem tanto se humilhou/ Inveja é um desgraça, alastra ódio e rancor/ E cocaína é uma igreja Gringa de le chereau// Pra cada rap escrito uma alma que se salva/ O rosto do carvoeiro é o Brasil que mostra a cara/ Muito blá se fala, a língua é uma piranha/ Aqui é só trabalho, sorte é pras crianças// Que vê o professor em desespero na miséria/ Que no meio do caminho da educação havia uma pedra/ e havia uma pedra no meio do caminho/ ele não é preto velho mas no bolso leva um cachimbo /// É o sleazestack dos zóio branco, repara o brilho/ Chewbacca na penha, maizena com pó de vidro/ Comerciais de TV, glamour pra alcoolismo/ É o Kinect do XBox por duas buchas de cinco.

HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar

(sample de Califórnia Azul)

E eu fico aqui pregando a paz e a cada maço de cigarro fumado a morte faz um jaz entre nós, cá pra nós, e se um de nós morrer, pra vocês é uma beleza.// Desigualdade faz tristeza./ Na montanha dos sete abutres alguém enfeita sua mesa./ Um governo que quer acabar com o crack, mas não tem moral para vetar comercial de cerveja. // Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura?/É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura. /Falar pra um favelado que a vida não é dura, e achar que teu doze de condomínio não carrega a mesma culpa. // / É salto alto, MD, Absolut, suco de fruta, mas nem todo mundo é feliz nessa fé absoluta/ Calma, filha, que esse doce não é sal de fruta, / Azedar é a meta, tá bom ou quer mais açúcar?"


Temos a questão do tráfico de drogas como cenário da canção. Imagens da cultura de massa de outras épocas aparecem na letra (sleazestack, e Chewbacca). Vários extratos sociais estão presentes neste texto. É uma verdadeira polifonia de referências, uma fala de alguém que trafega entre mundos com vocabulários diferentes. Alguns ouvintes sabem o que é "duas bucha de cinco", outros sabem quem foi "Hobsbawm". Isso em princípio, pois quem foi que criou este muro invisível? Este muro é real? 

Dizer mais sobre esta letra, que é uma pedrada, é estragar sua fruição. Apenas recomendo, busque as referencias que lhe faltam e tente criar as imagens e reconstruir os "argumentos" deste texto, vale a pena. Aqui tem um link que dá umas primeiras dicas, mas vá mais fundo.

Eu apresentei o texto já articulando as frases com os compassos e a cadência harmônica da canção - desculpem, pra mim ainda é canção. O sample do Rodrigo Campos cantando é manipulado em estúdio e acelerado. O andamento (velocidade) da canção fica um pouco mais rápido enquanto o tom da música vai do Em para o Fm (sobe meio tom). Bem, o trecho do sample possui o mesmo acompanhamento do Rodrigo, só meio tom acima - isso simplificando, pq tem um monte de sons adicionais que orquestram esta nova obra. Este acompanhamento é constituído de um movimento de baixos descendente (láb, sol, fá, mib, ré), desemboca em um zigue-zague cromático (dó#, ré, mib, ré), e por fim chega ao tom (fá). Mas quando a canção inicia a parte rap, entramos em uma estrutura monótona harmonicamente. Um único Fm durante 12 compassos. Nos momentos em que eu separei com /// - " sleazestack"... e "É salto alto..." - acontece uma mudança no acompanhamento. O baixo entra em uma linha próxima da composição de Rodrigo Campos, onde as duas frases do início são aproveitadas (fá#, mi, sol; fá#, mi, fá#), e as duas últimas substituídas por uma repetição da primeira (onde na canção original de Rodrigo faz sol, la, ré) e um encaminhamento para para o fim (originalmente havia "dó#, si, mi", mas agora aparece um frase longa de "sol, fá#, sol, la, ré, dó# si" - meio tom acima).

Isso tudo parece uma confusão, mas se você arriscar tocar, estas coisas que eu escrevi vão clarear a ideia do todo... caso você não toque, perceba somente que o lance da intertextualidade proposta por Criolo é plenamente orquestrada pelo Daniel Ganjaman e pelo Marcelo Cabral. 

É, foi meio até aqui que fui com meus alunos de violão e guitarra. 

Certo, sábado agora tem show do Criolo (e mais Maneva, Haikaiss e Mama Quila) e estamos todos convidados a presenciar este que é hoje um dos artistas mais sabidos da canção brasileira. 

Salve, família!
 






sábado, 2 de novembro de 2013

Russolo, rap e Hendrix: Reflexões e pautas atuais sobre os rumos da canção no Cem Ruídos.

João de Carvalho

Já comentei em um post anterior (O mal estar dos rumos) que uma das fortes tendências da invenção musical dos novos cancionistas diz respeito às experiências com a sonoridade. Naquele momento tentei relativizar – e discordar – um pouco das ideias lançadas por Rômulo Froes.
Apontei que o que Froes talvez estivesse querendo frizar como característica da “nova geração” de cancionistas não era uma experimentação com timbres, como ele descrevia em seu artigo, mas sim uma exploração mais ampla da sonoridade, o que envolvia dizer, principalmente, uma experimentação com texturas – e articulações de texturas – e uma assimilação do ruídos como matéria expressiva.
Resumindo o papo pra quem chegou agora, o artesanato musical praticado com esmero por figuras como Chico Buarque, que envolve a elaboração de sofisticadas linhas melódicas e inauditos caminhos harmônicos (ainda dentro do sistema tonal), vem cada vez mais ganhando menos adeptos dentre os cancionistas mais novos. Em compensação temos compositores altamente sensíveis para os aspectos relativos à sonoridade.
Froes aponta a popularização dos meios de gravação como o estopim para este novo cenário sonoro. Discordei dele neste ponto, e apontei a “Arte do Ruído”, de Luigi Russolo, como um primeiro marco importante para se compreender – e se avançar – a nova situação que vem se instaurando. É claro que a possibilidade de uma manipulação quase tátil do som, como é a que temos ao manejar os programas de gravação e edição de áudio, muda a maneira de se fazer música, porém colocar este advento como o principal ponto da mudança que vem ocorrendo é compreender apenas superficialmente as questões que aí estão envolvidas.
Foi Janete El Haouli – no fundo este texto é também um aquecimento para o festival que ela está organizando... mas já já chegamos aí – quem me lembrou que este ano está completando 100 anos da publicação do texto de Russolo. Este ensaio futurista, que em 1917 aparece em uma compilação de ensaios e batiza o conjunto, foi um marco na história da música. “L'Arte dei Rumore” era o livro de cabeceira de Cage. Quer mais? Este texto é apontado como precursor da música concreta.
Mas Russolo não era um teórico, ele era um artista (pintor, compositor, maestro e inventor), e não se contentando em escrever um texto profético, fez a profecia tomar seu corpo sonoro, por meio de seus “intonarumore” (suas máquinas de fazer ruído). Cabe lembrar que celebridades como Stravinsky, Ravel, Honegger, Claudel e Mondrian assitiram suas apresentações em Londres e Paris no ano de 1914. E o que eles acharam do malucão italiano? Bem, não sei, mas Ravel colocou um coro de rãs ao final de sua obra L'Enfant et les Sortiléges. Coisa de futurista.



Mas o que é este ruído que Russolo diz? Naquela altura a expressão ruído era tida como o oposto ao som convencionado como musical. Seria o “som não-musical”. Russolo reinvindicava para a música a possibilidade de criação e expressão com qualquer som. Todo som é musical. Hoje dizendo assim parece até um moinho de vento – poxa, claro que eu posso fazer com o som o que eu quiser – e isto é a prova mais cabal de que as intuições de Russolo estavam certas.
Certo, certo, mas isso é um blog sobre canção e você nunca ouviu falar desse tal Russolo, será mesmo que ele é importante pra você? Penso que se você quer ir além e compreender quais os “rumos da canção”, ele é importante sim. Tentando de outra forma, a palavra ruído, hoje, já não se refere mais ao mesmo conceito que o dos futuristas. Muita coisa aconteceu – inclusive a popularização dos home studios, como sugeriu Froes – e precisamos compreender suas consequências.
Mais perto do universo da canção podemos citar Hendrix, o músico que primeiro levou a sério essa parada de barulho. Hendrix nos prova que som é som, não nota. As notas musicas são mais um dos parâmetros modeláveis pelas mãos – e pés e bocas e dentes e arcos e tudo o que der na telha – de Jimi.
Vejam, se eu disser que o barato de Hendrix é que ele explora o timbre da guitarra, isso é um problema. Timbre é marca da fonte sonora, ou seja, aquilo que já está mapeado e assimilado em nosso repertório como sendo o som da guitarra. Isso um músico erudito também faz, diga-se de passagem, como um instrumentista erudito – via de regra – não compõe, é justamente isso (estudar o timbre de seu instrumento) que ele faz. Um arranjador mais tradicional também. Quem acompanhou o desdobramento do debate iniciado pelo Rômulo deve se lembrar que muitos contra-argumentos se deviam a este problema conceitual.
Mas se eu disser então que o barato de Hendrix é que ele se utiliza de ruídos, será que resolvo o problema? Bem, eu acho que melhora um pouco, mas ainda não chega lá... afinal, o que é ruído? Considero, assim explico para meus aluninhos da Educação Fundamental, que ruído é uma interferência na mensagem, algo que atrapalha a comunicação. Pensando assim é bem possível que escutemos Hendrix como ruidoso. Mas péra lá, este ruído não é a mensagem?


É, estas questões não são tão retas assim não, percebe? Eu resolvi isto com a palavra sonoridade, que é genérica e também pode conter imprecisões, mas dentro dela eu coloco o trabalho com texturas, timbres e ruídos. Por “trabalho com ruído” eu compreendo uma busca por harmonizar sons que usualmente não são utilizados por serem tidos como “não musicais”. Harmonia, melodia e ritmo não entram na sonoridade? É claro que sim. Mas então, o que difere o trabalho do Metá Metá do do Chico Buarque?
É que o trabalho musical do Metá Metá foca na pesquisa por sonoridades e o Chico em uma pesquisa melódico/harmonica (tonal). Uma pesquisa é mais ampla (e menos profunda em seus elementos específicos), enquanto a outra é profunda, porém controla menos os aspectos mais globais da obra. Parece até, respeitadas as proporções e especificidades, a relação entre a música aleatória e a serial.
Mas Hendrix não foi o único a aproximar a canção popular das profecias do futurista Luigi. Aconteceu o rap no meio do caminho. No rap o DJ – o camarada que toca os discos – manipula fragmentos de músicas pré-existentes, sobrepondo e tranformando o som como matéria tátil – sample. O scratch, pelo qual o DJ mostra seu virtuosismo rítmico, são feixes de “ruído branco” - chiado – que fazem contraponto com a base e com o canto.
E já que falamos do DJ, devemos pensar também um pouco sobre o próprio disco. Antes os chiados ocasionados pelo atrito da agulha no vinil eram tidos como uma espécie de ruído, algo que atrapalhava a mensagem contida nas faixas daquele círculo. Hoje não é exagero dizer que muita gente passou a escutar aquele chiado como algo significativo. Neste caso estamos longe do que Schaeffer (compositor e teórico, pioneiro da Música Concreta) gostaria com sua escuta acusmática, pois o que é valorizado são as relações simbólicas que se estabelecem com aquele timbre. É o timbre do disco servindo como portador de valores como, por exemplo, “pureza analógica” de registro (o que é um equívoco pois poderíamos adicionar o chiado digitalmente, mas beleza, nem sempre o verde nos diz esperança e o vermelho paixão, e seguimos a vida sabendo que eles podem nos dizer isso...). Em outras palavras, violino te leva aos céus – harpa então! -, guitarra te dá atitute e chiados de vinil te colocam em uma máquina do tempo que te transporta diretamente para uma loja de discos, onde você pode encontrar a "verdadeira boa música".
Brincadeiras de lado, vamos voltar ao rap? Só mais um pouquinho. Queria pontuar mais uma ideia que sempre me vem. A melodia é um elemento musical, certo? Ruído é algo que atrapalha a mensagem, em nosso caso, musical. Estaríamos envolvidos em uma expansão do controle do que é musical, e neste caso, aprendendo a utilizar todos os sons possíveis para nos expressar musicalmente. Isso já faz 100 anos, pelo menos. Então, como é que a voz – gente, vale lembrar que estamos falando de canção, e as tensões que envolvem a arte “puramente musical” são diferentes – sacaneou a melodia? Para onde ela expande a compreensão do “musical”? Onde ela transforma a interferência do ruído em reverência à complexidade da vida, este caos incontrolável?
Se você chegou na fala, estamos pensando juntos.
Já faz mais de vinte anos que o Tatit nos diz que toda a canção se origina nas matrizes tensivas da fala, e faz mais de cinquenta anos que João Gilberto chutou o pau da barraca do canto. O rap, por sua vez, como um novo paradigma da canção, explora esta proximidade da fala de maneira primorosa. Quem ainda não aprendeu a escutar a sonoridade das palavras – a melopéia, como Ezra Pound nos diz – como música, está na mesma condição que alguém que não percebe os jogos de tensão e relaxamento do sistema tonal. Isso, novamente, extrapola em muito o limite do rap. Não surge com ele e não se restringe a ele. Só o menciono porque nele a musicalidade da palavra se impõe de uma tal forma que quem só sabe sorver melodia o acha monótono. Mas como encarar, para mudar de exemplo, aqueles textos quilométricos dos cantadores de cordel com suas melodias monótonas? De muitas formas, tanto entrando no ciclo hipnótico de suas estruturas estróficas, como escutando o ricochetear das sílabas dentro da boca do cantor e/ou percebendo como a fala transforma as entoações dadas previamente pela melodia.
Pausa para escuta. Sábado que passou teve show do Siba – tem um texto/vídeo no forno sobre ele, aguardem – e quem não foi perdeu.


Mas João do céu, você começou falando do malucão futurista lá, que que isso tem a ver?
Meu caro, minha cara, deixemos o Russolo e pensemos no Bala.
A “poesia sonora”, conceito criado só na década de 1950, por Henri Chopin, tem seus primeiros experimentos dentre as tradições orais de performances dos futuristas – os russos também participaram dessa história – e, dentre todas as postulações destes artistas e pensadores, podemos dizer que a “poesia sonora” liberta a voz para a livre utilização do ruído.
E eu te pergunto, como não escutar aquele “hahahahahaha HAHAHAHAHAHA HAHAHAHAHAHA” do Criolo e não pensar nisso tudo?



Acontece que temos em nossa cidade – Londrina – a sorte de ter uma figura com a Janete El Haouli. A Janete foi minha professora na graduação. Ela foi pra São Paulo. Mas voltou pra Londrina e, corajosamente – coragem, ela disse uma vez, é agir com o coração – organizou a TOCA. E agora ela resolveu promover, junto com o Zé Mannis, o evento Música e Ecologia Sonora – Cem Ruídos, que ocorrerá entre os dias 12 e 15 deste mês. Este evento contará com pesquisadores do Brasil, França, Equador e Itália, e é uma homenagem ao centenário do texto de Russolo. Ao todo são 15 pesquisadores – artistas – que tem muito a nos dizer. É claro que o foco do debate não é canção, mas como você viu, se queremos ir para além de uma zona mediana de consciência é melhor libertar nossos ouvidos e (pré)conceitos.
Dentre as comunicações e videoconferências – são mais de 15 mesas, fora intervenções e oficinas – teremos um quadro mais ou menos assim: No primeiro dia – uma introdução ao ruído? – a palavra fica com Daniel Teruggi, José Henrique Padovani, Fernando Iazzetta e Lilian Campesato. A Lilian, por exemplo, apresentará a comunicação “Vidro e Martelo: contradições na estetização do ruído”.
No segundo dia o debate se expande e fica ainda mais interdisciplinar (tratará desde o ruído na fotografia às corridas ilegais de carros e motos), e contará com a presença de Enzo Minarelli, Leonardo Fuks, Fernanda Magalhães e Leila Soldberg Jeolás. Dentre as pautas deste dia destaco a comunicação do italiano Enzo Minarelli – que é hoje o grande pesquisador e poeta da poesia sonora – que falará sobre o “Ruidismo russoliano e ruidismo na poesia sonora”.
No terceiro dia teremos a participação de Fabiano Kueva, Silvia Zambrini, Alexandre Fenerich, Rodolfo Caesar e Silvio Demétrio. A linha condutora deste dia estará centrada na investigação das características da escuta. A primeira comunicação do dia ficará a cargo do equatoriano Fábio Kueva, e terá como mote “O ouvido não se educa, se liberta”.
Na sexta ocorrerá os seminários do Rodolfo Caesar e do Mannis. O Rodolfo irá tratar sobre “A espessura da sonoridade e a leveza de seus suportes”, e o Mannis sobre o “Conforto acústico em ambientes hospitalares”. O encontro será encerrado com um passeio pela Mata dos Godoy. Este espaço tão especial que está ameaçado pela construção de um aeroporto em sua zona de amortecimento. (Se você ainda não conhece esta questão tão urgente de nossa cidade, assista ao vídeo do Mioto aqui). Será uma grande experiência – sem macacos, tomara – de escuta, que irá nos aproximar da vivência multisensorial da paisagem sonora.
Todos estes debates e experiências valem por si mesmos. Mas se você ainda estiver pensando em como isso pode ser útil dentro do universo da canção, eu te digo que um dos recursos que vem ganhando espaço dentro das produções de áudio dos novos cancionistas é justamente a utilização de paisagens sonoras. Dentre muitas experiências (poderíamos citar a série Música de Bolso, em que cancionistas são convidados para interpretarem suas obras em espaços públicos, e a paisagem sonora – e visual – do espaço passa a estabelecer um diálogo com a obra) cito um fragmento do texto que eu e o Danilo Lagoeiro (amigo e ex-aluno) analisamos a canção Maria, Minha Maria, de domínio público, na interpretação de Biu Roque com Siba e a Fuloresta, e produção de Beto Villares:

Nos próximos dezesseis compassos, correspondentes aos quarenta segundos finais da faixa, o que escutamos é somente o solo das cigarras sobre a mesma quadratura harmônica que servira de aura ao canto que se concluiu. Não é difícil recriar a atmosfera de contemplação que deve ter tomado o personagem de voz seca após seu áspero desabafo, após seu lamento.” texto inteiro aqui.

Enfim, será uma semana cheia, em que poderemos nos nutrir com informações para alimentar nossas atividades e caminhos particulares. E aí, vamos?

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O Siba está quase chegando, Londrina.

João de Carvalho

Bem, daqui a dois dias o cantor e compositor Siba estará em Londrina trazendo o show de seu último disco, o "Avante". O álbum foi lançado no começo do ano passado e, segundo o próprio Siba, é um pretexto para reunir e viabilizar o que realmente importa: o show. Mesmo assim, encarando o disco como "simples pretexto" e como ponto de partida de um processo que vem se desenvolvendo já faz quase dois anos nos palcos do Brasil e do Mundo - ele virá para Londrina depois de uma passagem por Londres - "Avante" conseguiu se manter como um dos melhores discos lançados em 2012. E foi um ano de grandes discos, diga-se de passagem.

E, se por um lado é uma pena que o show tenha demorado tanto para vir pra cá, teremos a oportunidade de conferir um estágio bem mais experimentado desse processo infinito – peno menos até seu “Mute” final – deste artista que trabalha muito além da superficialidade que esta época de imagens rápidas nos impõe. Vamos com calma, o quero dizer é que Siba é um artista que realmente tem conflitos estéticos profundos, e que vem se equilibrando entre as condições – e contradições – do mercado musical com extrema integridade.

Vejam bem o conflito deste cantador pernambucano (segundo o que compreendo, é claro, rss): como respeitar e compreender as formas artísticas tradicionais de sua região sem ao mesmo tempo cair em um sentimento de nostalgia que tende a estancar o fluxo vivo desta mesma cultura? Em outras palavras, como ser atual e trazer dentro de si as bases de sua tradição? Em tempo, por “sua tradição” estou me referindo ao “maracatú de baque solto” - principalmente, onde Siba se fez um mestre e formou sua própria nação, o Maracatú Estrela Brilhante - e todas as poéticas populares que tem no verso rimado e metrificado seu tronco comum.

No Mestre Ambrósio esta questão era evidente, afinal o grupo surgiu dentro do movimento manguebeat, mas mesmo a Fuloresta não é um grupo de maracatú típico. Vale dar uma lida no texto que fizemos, o Danilo Lagoeiro e eu, sobre o diálogo cancional entre a Céu e o Biu Roque (aqui). Neste texto, uma leitura um pouco técnica, fica evidente que mesmo o trabalho da Fuloresta não é um resgate tradicionalista ou folclórico, e sim que joga com a tensão de como traduzir toda a riqueza musical da zona da mata para o disco (no caso do nosso recorte) e para o palco (tradicionalmente não existe nem palco nos festejos de maracatú).

Avante é um novo passo nessa caminhada, e se Siba foi – talvez – o mangueboy mais radical em sua imersão na cultura tradicional, é aqui que esta imersão adquire uma profundidade realmente atemporal. A geografia deste novo álbum aponta para elos distantes entre a cultura local – novamente, Zona da Mata pernambucana – e lugares distantes (distantes?) como o Congo ou o Afeganistão.

Tá, mas isso é só um post de aquecimento para o show do sábado, e eu tenho muitas teses e intuições sobre este disco que é um dos álbuns que – sem exagero – mais marcaram a minha vida. Já chorei tanto e dei tanta risada ao som destes nem 44 minutos... Vamos focar em um ponto? Que tal o vídeo-clipe lançado em junho deste ano?



Preparando o Salto é a primeira canção do disco. Este clipe, produzido por Renan Costa Lima, é um diálogo com algumas das referências mais profundas do disco: que lugar é esse? Apesar de simples o clipe propõe uma série de referências iconográficas muitos sugestivas e pertinentes com a estética metafórica e existencial de Siba. Mas, vamos lá? Que lugar é esse? São dunas brasileiras ou estamos em pleno Oriente Médio? Me lembro daquele filme, “Casa de Areia”, em que o Andrucha Waddingtton utiliza esta paisagem branca das dunas para evocar um não território, atemporal, quase lunar.

Nessa perspectiva lunar, podemos até mesmo ver uma espécie de pequeno príncipe andando em circulo sobre seu planeta. Mas, percebam, não é só a imagem – nem sei porque comecei falando dela – que joga com esta desterritorialização. Que som é esse? Preparando o Salto é uma canção ousada, não só pela métrica impar que remete – neste caso – aos compassos da música árabe de um modo geral (1234 1234 12 1), mas como pelo plano da composição timbrística que é uma das investigações mais radicais do álbum. 

Um último comentário – isso é só um post de aquecimento, não um artigo científico – o final da letra de preparando o salto rompe com o esquema métrico proposto no início (quadras em 12 sílabas). Isso não é um acaso. Esse rompimento – primeiro apresentando uma quadra em redondilha maior, e depois chutando o pau de vez com um verso, rimado, mas livre – é uma materialização do próprio tema deste fragmento:

Vou passar
Como um santo mudo
Mirando o alto
Rindo
Preparando o salto
Deixando pra trás … tudo
 

E aí? Vamos pro show nos divertir e nos alimentar dessa poesia que costura tempos e territórios?

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Novo single de Criolo, "Duas de Cinco".

João de Carvalho


Acabam de ser lançadas duas canções do novo single do Criolo, intitulado "Duas de Cinco". O site de vendas do disco - vinil - é fruto de um trabalho muito integrado entre produtores e artistas, e apresenta uma ótima saída para a crise no formato de distribuição da música em tempos de facebook e youtube.

É o seguinte, lançar um CD hoje já se configurou como um gasto desnescessário, segurar a informação produzida, não liberando para uso comum, é quase antiético. Então, o que o artista pode vender?

Faz algum tempo que gravar é uma forma de vender shows, e não propriamente lucrar com a venda de discos. Mas ao mesmo tempo que presenciamos essa revolução via internet vemos surgir, como uma contramaré, o retorno do vinil. Melhor qualidade de som (os formatos divulgados na internet são todos compactados) e relação tátil com a obra material são os principais benefícios deste formato. Não devemos nos esquecer, todavia, que o produto de que estamos tratando é um disco de rap, linhagem poética que tem no DJ - o tocador de disco - a figura do maestro, senhor dos sons e do batuque no hip hop.

Bem, mas o "Duas de Cinco" não é um LP, e isso é um dado muito importante! Vivemos em um mundo onde a quantidade de informação satura nossos olhos e ouvidos. Tomar cuidado com a informação que se produz é um ato de respeito para com a qualidade de vida de nosso semelhante, no caso da relação com a música, lançar um single é muito mais do que uma moda retrô, é um respeito com o público.

E, devo dizer, as duas faixas que foram liberadas são coisas finíssimas!!!

A lírica de Criolo pega mais fundo na ferida, dessa vez dissecando ainda mais temas como o tráfico e o consumo de drogas, lícitas e ilícitas, a marginalização e a solidão humana mais profunda. Os versos "É o Kinect do XBox/ Por duas bucha de cinco", que dá nome para a canção, para o single e para o belíssimo Lyric Vídeo, dá bem a idéia geral do que podemos esperar do single. Criolo, MC pra calá a boca de quem duvidô (na bôa, enche o saco ficar dizendo que ele não é "só um MC", e sim um grande cantor, como se voz tivesse que honrar uma dívida para com a melodia... ou dizer que ele amaciou para agradar a classe média... ), canta como um indivíduo dilacerado pela dor de seus semelhantes.

Para finalizar, fiquem com a produção audio visual do projeto - vale ressaltar, um vídeo fantástico com recursos modestos, perfeito para uma comunicação mais sinestésica como a que o youtube nos proporciona.


Essa canção reaproveita o refrão de "Califórnia Azul", de Rodrigo Campos (que canção!!!). Intertextualidade o tempo todo, pois a vida é assim mesmo, se repete, se atualiza, se intercambia... só assim não morre quando azeda.






Ps.: quando eu comecei a escrever este post o vídeo da canção tinha menos de 300 visualizações, quando eu terminei havia mais de 11.176...
Ps.2.: fui rápido, mas o povo não dorme... rss... (entrevista de divulgação da canções)

Saia justa. Eita vida maluca.

esse negócio de que o Caetano não disse nada eu discordo,
ele disse muito,
afinal, estávamos todos querendo saber o pq...
e foi a isso que ele se reportou,
justificou o homem comum, atado a uma série de relações complexas.
quem esperou que ele mudasse de time 
ou desse um xeque mate no assunto foi inocente, 
o debate continua para muito além da figura parcial 
e periférica 
desse velho "homem cordial".

para mim, não poderia haver texto mais sóbrio e coerente.



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Reviver a Chama Viola


 
João de Carvalho

(o texto que se segue já é um pouco antigo - começo do ano passado -
faz parte de uma pequena coletânea chamada 
"3 ensaios poéticos e porosos"
que fiz como apoio às aulas da primeira turma do curso sobre canção)

Acabo de assistir ao documentário
"Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje".
(dirigido por Izabel Jaguaribe
com roteiro de Zuenir Ventura):


Logo na primeira sequência de imagens
antes ainda dos primeiros créditos e nome do filme –
Paulinho viola
a fronteira entre o passado e o presente
quando declama:
Chama que o samba semeia
a luz de sua chama
a paixão vertendo ondas
velhos mantras de Aruanda.

Chama por Cartola
chama por Candeia
chama Paulo da Portela, chama
(…) e outros irmãos de samba”

A chama é o fogo ainda vivo
é calor e movimento.
A chama de uma vela acende uma oração
dá vida a uma prece.
Como em um templo antigo
muitas velas clareiam a sala do samba.

E Paulinho chama
meio náufrago no passeio público,
para que possamos nos reunir
a qualquer hora do dia,
nesta irmandade de bambas.

Mas que raciocínio claro tem esse Seu Paulinho!

A consequência de reviver o passado,
de violar as fronteiras óbvias do tempo,
só poderia mesmo ser a extinção da saudade.
E é isto mesmo que o compositor começa
(e meça e remeça e arremessa)
explicando ao seu amigo livreiro
na primeira cena do documentário.

Um homem que chama o passado para o presente,
mantém a chama acesa,
não pode mesmo sentir saudade.

Paulinho empunha seu violão,
e canta e toca
como quem reza uma oração.
E é assim que ele canta
e decanta o samba de Wilson Batista;
cada palavra com seu sentido especial.


Mas ainda mais especial
é o verso que diz
meu mundo é hoje”.

É como se a canção
funcionasse feito
um oráculo,
de onde de repente salta um verso
que o faz pensar
sobre algumas relações subjetivas e pessoais
que resguardavam-se quietas e sem forma
no interior
da alma.

Porém
quando o samba do sambista diz
meu mundo é hoje”,
de fato
não está querendo nada mais
do que caracterizar um personagem que,
não dando valor ao “prezo” da hipocrisia
(e não é preço e nem peso;
o que Paulinho canta no filme
- diferente de sua própria gravação
e da composição original d Wilson Batista -
é prezo!),
vive o presente,
sem se preocupar com o futuro.

Agora,
este mesmo verso
cantado pela figura de Paulinho da Viola,
vindo logo depois
de seu “Chamamento”
e da conversa com o livreiro,
significa muito mais
do que isto.

... é comum quem toma apenas um verso de uma canção,
mesmo que este significasse algo completamente diferente
em seu contexto original,
e o utiliza como um amuleto
capaz de encerrar em si
e traduzir uma gama enorme de ideias e sensações.

E o que acontece aqui
é parecido com o que ocorre com Pierre Menard
ao reescrever
de maneira idêntica
o Quixote em uma das “Ficções”.

E não era mesmo o Borges
q falava q
os artistas
inventam
seus precursores?

Aí!
O Borges disse isto em outra circunstância,
mas o que eu penso agora,
adulterando-o à la Menard,
é que este processo de rever o passado
é muito mais cotidiano do que se parece.
Aliás,
tem ainda aquele poema
do Augusto de Campos,
o “rever”,
que à maneira de Ezra Pound,
make it new”,
parece tratar de questão semelhante.
Considerando isto,
creio que se
o Paulinho fosse de Campos,
ele faria o poema:
reviver”.

E ...
é justamente da parodia do verso em questão,
de Wilson Batista,
qe Paulinho Batiza
seu documentário.

... quando o filme começa o samba entoa:
Eu sou assim
Meu mundo é hoje
não existe amanhã pra mim”.

... ao final do filme Paulinho recria:
Meu tempo é hoje
eu não vivo no passado
o passado vive em mim”.

E isto não é
por pouco o
poema q eu
ali li ?


(poema Reviver, João de Carvalho, 2012)