quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Criolo em Londrina, o que esperar?

João de Carvalho


Criolo foi um dos estopins desta nova "boa onda" - visibilidade - do rap nacional. O seu segundo disco, o Nó na Orelha, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, levou a poética do Kleber Cavalcante, filho da Dona Vilani, para além da cena do hip hop nacional. Vocês já devem conhecer um tanto desta história...

O primeiro disco do Criolo, quando ainda assinava Criolo Doido, chama-se Ainda há Tempo e pode ser conferido aqui

É importante escutar o "Ainda há Tempo" para se ter uma ideia mais clara do que foi o "Nó na Orelha". Podemos dizer que muitas das coisas que caracterizam a poética do Criolo em seu segundo disco já estão presentes neste primeiro trabalho. Mas o que seriam estas "coisas que caracterizam a poética"? Aí não é tão fácil de dizer assim rápido... mas penso que o primeiro ponto que grita nisso que chamei de poética do Criolo é este apelo ao amor, como fica claro tanto em Ainda há Tempo - a canção - quanto em Não Existe Amor em SP.

Poderíamos pensar que o manejo das palavras vai ficando, do primeiro álbum para o segundo, mais abstrato. É evidente que o uso de metáforas e de um discurso mais subjetivo é uma das marcas mais fortes do Nó na Orelha. Mas é preciso lembrar que este segundo álbum é um registro de canções (pra mim rap é canção, mas é importante frisar que o próprio Criolo faz esta distinção de termos) antigas, que eram conhecidas somente pelos amigos próximos que ficavam com as "orelhas cheias de nós" depois de escutar o Klébinho cantar. Vejam que os títulos dos álbuns refletem com precisão esta diferença de propósito, enquanto um se engaja com mais afinco com os problemas emergenciais da comunidade o outro se destina (entre outras coisas) à um aprimoramento da consciência e do exercício lógico/poético. Estas diferenças são tendencias gerais, e não distritos isolados um do outro.

Nos shows que Criolo registrou ao vivo - no Circo Voador e com o Emicida - rolou um resgate natural de algumas canções do primeiro disco. Ainda que a figura pública - repercutida pela imprensa - do Criolo tenha se mostrado mais pelo seu lado "mais amor", o MC inconformado sempre esteve presente.

Mas a fase Nó na Orelha acabou. Agora Criolo vem apresentar um novo show, mais próximo da estética de base do hip hop. DJ Dandan, por exemplo, assume o toca discos. A banda está mais compacta, e sem os metais coordenados pelo Thiago França, a guitarra de Guilherme Held ganha outro peso. Até mesmo a postura (e vestimentas) do Criolo parecem frisar a natureza deste novo momento, onde conquistado um novo público, é preciso reforçar a natureza combativa de sua arte. Me lembro de uma das inúmeras entrevistas que eu vi do Criolo, em que ele dizia que um MC não faz rap por falta de escolha, e sim pq é preciso fazer!

Vale a pena conferir estes dois vídeos que se seguem. O primeiro é uma chamada para o show de estreia do novo trabalho, o Duas de Cinco, e o segundo é a canção ao vivo (não consegui colocar pra assistir aqui... ???).



Bem, como este é um blog de caráter educacional, vou comentar um pouco sobre algumas características desta nova canção, a Duas de Cinco, pois trabalhei ela com alguns alunos de instrumento - não do curso "A Canção e Seus Sentidos".

Antes de mais nada é preciso escutar com calma a canção original de Rodrigo Campos, a Califórnia Azul.


Rodrigo Campos consegue criar um texto cheio de sugestões, mas com buracos imensos, onde nos convoca à uma escuta ativa. Em nenhum momento aparece uma cena clara. Mas são imagens onde podemos localizar uma intriga entre dois jovens - o crime foi consumado? (é só uma potência para o mal, uma energia deslocada... pode haver salvação... "vamos resgatar", Criolo clama em Ainda há Tempo...) - tráfico, poder, autoestima... 


"Não tava lá fazendo cêra
ele não tá de brincadeira
garoto se jogou no asfalto
carregado na canseira...

Deixou a mina na calçada
como é bonita e safada
fica me olhando desse jeito
e eu não posso fazer nada...

Já dei plantão na rua dela
namorado na favela
garoto que já tem cartaz
e a mina dando trela...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou...


Se eu fosse um cara diferente
chegava junto de repente
beijava a boca e tudo mais
pelo tesão que a gente sente...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou..."

Perdão colocar a letra inteira aqui pra vocês, mas senti que era importante percebermos esta escrita do Rodrigo Campos, bem ele, que tal como Criolo, também cresceu na periferia de São Paulo. Esta canção é uma crônica que registra o drama de um jovem sujeito ao crime, motivado por aflições humanas básicas... um desnudamento ao ponto de revelar a fragilidade do ser, o que transcende o limite da luta de classes... um discurso imagético, com referências locais e de época (jaco califórnia azul é uma jaqueta azul, que era o sonho de consumo dos jovens da década de 1980; vapor é apelido - antigo - para os jovens e crianças trabalhadores do tráfico de droga)...  

A parte musical também é muito condizente com toda esta proposta narrativa. O violão de Campos é muito simples (atenção professores de violão, esta canção é uma ótima pedida para se trabalhar com os alunos!), mas de forma alguma é simplório. Temos uma harmonia modal em Em, composta por um movimento dissonante nos baixos... este violão acaba sugerindo uma atmosfera de suspense, sensação reforçada pela construção da letra... tudo é muito simples, mas muito contundente. 

A forma da canção também traz informação, pois articula o texto de maneira assimétrica, destacando o sentido da última estrofe. Esta configuração formal, este recorte do tempo, sublinha a dimensão do tesão (força tipicamente jovem) e da insegurança frente à um grupo (conflito tipicamente jovem). Os momentos instrumentais da canção valorizam as conexões subjetivas desencadeadas pelo texto.  O trabalho de textura e sonoridade desta canção é fantástico - tb, é o Kiko Dinucci aí! 

Criolo disse que quando acabou de escrever a primeira parte de Duas de Cinco, ele já sabia que gostaria de ter como refrão a canção de Rodrigo Campos. De fato, muitas das características estilísticas que apontei no Rodrigo são aproveitadas por Criolo. Vejamos:


(sample de Califórnia Azul)

É o cão, é o cânhamo, é o desamor/ é o canhão na boca de quem tanto se humilhou/ Inveja é um desgraça, alastra ódio e rancor/ E cocaína é uma igreja Gringa de le chereau// Pra cada rap escrito uma alma que se salva/ O rosto do carvoeiro é o Brasil que mostra a cara/ Muito blá se fala, a língua é uma piranha/ Aqui é só trabalho, sorte é pras crianças// Que vê o professor em desespero na miséria/ Que no meio do caminho da educação havia uma pedra/ e havia uma pedra no meio do caminho/ ele não é preto velho mas no bolso leva um cachimbo /// É o sleazestack dos zóio branco, repara o brilho/ Chewbacca na penha, maizena com pó de vidro/ Comerciais de TV, glamour pra alcoolismo/ É o Kinect do XBox por duas buchas de cinco.

HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar

(sample de Califórnia Azul)

E eu fico aqui pregando a paz e a cada maço de cigarro fumado a morte faz um jaz entre nós, cá pra nós, e se um de nós morrer, pra vocês é uma beleza.// Desigualdade faz tristeza./ Na montanha dos sete abutres alguém enfeita sua mesa./ Um governo que quer acabar com o crack, mas não tem moral para vetar comercial de cerveja. // Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura?/É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura. /Falar pra um favelado que a vida não é dura, e achar que teu doze de condomínio não carrega a mesma culpa. // / É salto alto, MD, Absolut, suco de fruta, mas nem todo mundo é feliz nessa fé absoluta/ Calma, filha, que esse doce não é sal de fruta, / Azedar é a meta, tá bom ou quer mais açúcar?"


Temos a questão do tráfico de drogas como cenário da canção. Imagens da cultura de massa de outras épocas aparecem na letra (sleazestack, e Chewbacca). Vários extratos sociais estão presentes neste texto. É uma verdadeira polifonia de referências, uma fala de alguém que trafega entre mundos com vocabulários diferentes. Alguns ouvintes sabem o que é "duas bucha de cinco", outros sabem quem foi "Hobsbawm". Isso em princípio, pois quem foi que criou este muro invisível? Este muro é real? 

Dizer mais sobre esta letra, que é uma pedrada, é estragar sua fruição. Apenas recomendo, busque as referencias que lhe faltam e tente criar as imagens e reconstruir os "argumentos" deste texto, vale a pena. Aqui tem um link que dá umas primeiras dicas, mas vá mais fundo.

Eu apresentei o texto já articulando as frases com os compassos e a cadência harmônica da canção - desculpem, pra mim ainda é canção. O sample do Rodrigo Campos cantando é manipulado em estúdio e acelerado. O andamento (velocidade) da canção fica um pouco mais rápido enquanto o tom da música vai do Em para o Fm (sobe meio tom). Bem, o trecho do sample possui o mesmo acompanhamento do Rodrigo, só meio tom acima - isso simplificando, pq tem um monte de sons adicionais que orquestram esta nova obra. Este acompanhamento é constituído de um movimento de baixos descendente (láb, sol, fá, mib, ré), desemboca em um zigue-zague cromático (dó#, ré, mib, ré), e por fim chega ao tom (fá). Mas quando a canção inicia a parte rap, entramos em uma estrutura monótona harmonicamente. Um único Fm durante 12 compassos. Nos momentos em que eu separei com /// - " sleazestack"... e "É salto alto..." - acontece uma mudança no acompanhamento. O baixo entra em uma linha próxima da composição de Rodrigo Campos, onde as duas frases do início são aproveitadas (fá#, mi, sol; fá#, mi, fá#), e as duas últimas substituídas por uma repetição da primeira (onde na canção original de Rodrigo faz sol, la, ré) e um encaminhamento para para o fim (originalmente havia "dó#, si, mi", mas agora aparece um frase longa de "sol, fá#, sol, la, ré, dó# si" - meio tom acima).

Isso tudo parece uma confusão, mas se você arriscar tocar, estas coisas que eu escrevi vão clarear a ideia do todo... caso você não toque, perceba somente que o lance da intertextualidade proposta por Criolo é plenamente orquestrada pelo Daniel Ganjaman e pelo Marcelo Cabral. 

É, foi meio até aqui que fui com meus alunos de violão e guitarra. 

Certo, sábado agora tem show do Criolo (e mais Maneva, Haikaiss e Mama Quila) e estamos todos convidados a presenciar este que é hoje um dos artistas mais sabidos da canção brasileira. 

Salve, família!
 






Um comentário:

  1. Ótima análise! Vou procurar saber mais sobre essa música e outras do Criolo, que amo tanto. Isso é que é cultura!!

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