segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Um papo com Siba

João de Carvalho

"... não existe vida sem a morte."

No dia 26 de outubro tive a oportunidade de fazer uma pequena entrevista com o Siba, em sua passagem por Londrina. Foi a primeira vez que me atrevi a "entrevistar" alguém, então não esperem um desempenho lá grandes coisas. Assistindo ao vídeo que fizemos, percebi que minha ansiedade em comunicar um monte de ideias, somado ao fato do natural constrangimento frente à câmera (e ao Siba), e o angustiante grave que vinha da passagem de som, me deixaram cômico. Mas blz. Eu supero.

Devo agradecer à Patrícia Zanin (da rádio UEL FM) por ter agendado nosso papo. No dia do show, mais precisamente durante a passagem de som no teatro, Siba concedeu uma série de entrevistas. Foram 3 antes de nos atender, e em cada uma ele foi deixando a marca de seu raciocínio claro e profundo. Nestes papos que precederam nosso papo, Siba esclareceu sua relação com a cultura popular, dizendo-se ((com as minhas palavras)) muito mais um agraciado do que um agraciador. Ainda deu uma aula sobre suas referências de guitarra, de Hendrix a Franco (guitarrista congolês), e esclareceu o que é turnê e o que são shows estratégicos de ampliação de público, passando na prova dos nove da humildade.

"... a não ser nessa vidinha, classe média, confortável, que a gente leva achando que tá livre de tudo, quando na verdade, ela tá aí, ó, a morte tá sempre presente mesmo sem a gente ver, acho essa consciência muito importante..."

E para quem está chegando por agora no repertório desse pernambucano (seja bem vind@! ), eu recomendo assistir ao teaser do documentário Nos Balés da Tormenta. Tem também o Fuloresta do Samba, que é de lei. Seria legal também ler o texto que o próprio Siba redigiu apresentando o novo trabalho. Vale a pena fazer isso, mas dá pra continuar lendo... ;)

Enfim, chegou a hora do nosso papo. Eu tentei fazer algumas perguntas, todas meio confusas, talvez você tenha que assistir mais de uma vez pra entender o que eu estava pensando, e não é culpa sua... mas, é o que tem pra hj. O Siba foi super compreensivo e deu umas respostas massas pra caramba! Por isso vale assistir ao vídeo, pois entramos em alguns assuntos que normalmente não podemos desenvolver em conversas rápidas. Neste vídeo-documento você pode conferir Siba tecendo algumas reflexões sobre a vida e a morte, sobre o sagrado, sobre o artesanato cancional, sobre muita coisa... 

E ao fim do vídeo vocês podem conferir meu momento fã. Tomei coragem e toquei a versão que fiz de Qasida. Uma singela homenagem que tem muito a ver com o rumo que as perguntas tomaram. De fato, muito da interpretação que tenho sobre a obra do Siba está relacionada com um projeção que faço, amplamente apoiada no repertório que montei para dar aula de História da Canção (que ministrei este ano no Festival de Música de Londrina).


vídeo entrevista


Clicaqui, e assista agora o vídeo que o Mioto fez especialmente para nosso blog! Valeu mesmo, meu mano! E valeu também ao Alexandre Ficagna e ao Fagner Bruno, respectivamente pelo som e câmera... todo mundo com a mais pura camaradagem! Massa mesmo, gente!

A verdade é que fiquei com vontade de proseá muito mais... Faltou refinar mais sobre como Siba fez a aproximação com a música congolesa e afegã, por exemplo. Algumas das coisas que percebo como paralelo com a música árabe - de um modo bem geral - é a utilização de longas seções instrumentais, as mudanças de andamento e o uso de compassos com métrica alternada. E, como paralelo com a música do congo, eu poderia lembrar da utilização da marimba (ele mesmo disse em algum lugar, a marimba entraria na banda para remeter ao som da Kalimba) - Mulatu Atatke toca marimba - e do uso constante da dobra de sexta nos solos de guitarra (no começo eu achava que isto se remetia mais à uma inversão das terças caipiras das violas) e do suingue sincopado dos acordes nas cordas mais agudas. Gostaria de perguntar também, sobre como foi o processo de busca pela sonoridade do disco, a utilização de tuba e marimba em meio às guitarras dele e de Catatau. Mas, tudo isso fica pra próxima... ou eu organizo melhor e faço por e-mail... mas tá, isso é outro papo.

Espero que tenham gostado.
Até!

ps.: tem um vídeo que eu recomendo...


Este vídeo é muito legal, e apresenta cenas do ensaio da banda que veio à Londrina. Serve como amostra do show que vem sofrendo mutações desde seu nascimento. Lembro que eu me toquei do tamanho da delicadeza de Bravura e Brilho durante o show... percebam - aos 5'24" do vídeo acima - que contraponto mais inusitado que o teclado e o assovio fazem com a melodia da voz (isso junto com toda a textura que muda e fica mais em staccatto)... este timbre de assovio, a sonoridade desta seção, tem uma espessura robusta, grávida de significados! Com todo respeito, precisa de muita cera nos ouvidos para não escutar uma referência ao universo infantil nesta passagem.

Agora acabou mesmo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Criolo em Londrina, o que esperar?

João de Carvalho


Criolo foi um dos estopins desta nova "boa onda" - visibilidade - do rap nacional. O seu segundo disco, o Nó na Orelha, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, levou a poética do Kleber Cavalcante, filho da Dona Vilani, para além da cena do hip hop nacional. Vocês já devem conhecer um tanto desta história...

O primeiro disco do Criolo, quando ainda assinava Criolo Doido, chama-se Ainda há Tempo e pode ser conferido aqui

É importante escutar o "Ainda há Tempo" para se ter uma ideia mais clara do que foi o "Nó na Orelha". Podemos dizer que muitas das coisas que caracterizam a poética do Criolo em seu segundo disco já estão presentes neste primeiro trabalho. Mas o que seriam estas "coisas que caracterizam a poética"? Aí não é tão fácil de dizer assim rápido... mas penso que o primeiro ponto que grita nisso que chamei de poética do Criolo é este apelo ao amor, como fica claro tanto em Ainda há Tempo - a canção - quanto em Não Existe Amor em SP.

Poderíamos pensar que o manejo das palavras vai ficando, do primeiro álbum para o segundo, mais abstrato. É evidente que o uso de metáforas e de um discurso mais subjetivo é uma das marcas mais fortes do Nó na Orelha. Mas é preciso lembrar que este segundo álbum é um registro de canções (pra mim rap é canção, mas é importante frisar que o próprio Criolo faz esta distinção de termos) antigas, que eram conhecidas somente pelos amigos próximos que ficavam com as "orelhas cheias de nós" depois de escutar o Klébinho cantar. Vejam que os títulos dos álbuns refletem com precisão esta diferença de propósito, enquanto um se engaja com mais afinco com os problemas emergenciais da comunidade o outro se destina (entre outras coisas) à um aprimoramento da consciência e do exercício lógico/poético. Estas diferenças são tendencias gerais, e não distritos isolados um do outro.

Nos shows que Criolo registrou ao vivo - no Circo Voador e com o Emicida - rolou um resgate natural de algumas canções do primeiro disco. Ainda que a figura pública - repercutida pela imprensa - do Criolo tenha se mostrado mais pelo seu lado "mais amor", o MC inconformado sempre esteve presente.

Mas a fase Nó na Orelha acabou. Agora Criolo vem apresentar um novo show, mais próximo da estética de base do hip hop. DJ Dandan, por exemplo, assume o toca discos. A banda está mais compacta, e sem os metais coordenados pelo Thiago França, a guitarra de Guilherme Held ganha outro peso. Até mesmo a postura (e vestimentas) do Criolo parecem frisar a natureza deste novo momento, onde conquistado um novo público, é preciso reforçar a natureza combativa de sua arte. Me lembro de uma das inúmeras entrevistas que eu vi do Criolo, em que ele dizia que um MC não faz rap por falta de escolha, e sim pq é preciso fazer!

Vale a pena conferir estes dois vídeos que se seguem. O primeiro é uma chamada para o show de estreia do novo trabalho, o Duas de Cinco, e o segundo é a canção ao vivo (não consegui colocar pra assistir aqui... ???).



Bem, como este é um blog de caráter educacional, vou comentar um pouco sobre algumas características desta nova canção, a Duas de Cinco, pois trabalhei ela com alguns alunos de instrumento - não do curso "A Canção e Seus Sentidos".

Antes de mais nada é preciso escutar com calma a canção original de Rodrigo Campos, a Califórnia Azul.


Rodrigo Campos consegue criar um texto cheio de sugestões, mas com buracos imensos, onde nos convoca à uma escuta ativa. Em nenhum momento aparece uma cena clara. Mas são imagens onde podemos localizar uma intriga entre dois jovens - o crime foi consumado? (é só uma potência para o mal, uma energia deslocada... pode haver salvação... "vamos resgatar", Criolo clama em Ainda há Tempo...) - tráfico, poder, autoestima... 


"Não tava lá fazendo cêra
ele não tá de brincadeira
garoto se jogou no asfalto
carregado na canseira...

Deixou a mina na calçada
como é bonita e safada
fica me olhando desse jeito
e eu não posso fazer nada...

Já dei plantão na rua dela
namorado na favela
garoto que já tem cartaz
e a mina dando trela...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou...


Se eu fosse um cara diferente
chegava junto de repente
beijava a boca e tudo mais
pelo tesão que a gente sente...

Compro uma pistola do vapor
visto um jaco Califórnia azul
faço uma mandinga pro terror
e vou..."

Perdão colocar a letra inteira aqui pra vocês, mas senti que era importante percebermos esta escrita do Rodrigo Campos, bem ele, que tal como Criolo, também cresceu na periferia de São Paulo. Esta canção é uma crônica que registra o drama de um jovem sujeito ao crime, motivado por aflições humanas básicas... um desnudamento ao ponto de revelar a fragilidade do ser, o que transcende o limite da luta de classes... um discurso imagético, com referências locais e de época (jaco califórnia azul é uma jaqueta azul, que era o sonho de consumo dos jovens da década de 1980; vapor é apelido - antigo - para os jovens e crianças trabalhadores do tráfico de droga)...  

A parte musical também é muito condizente com toda esta proposta narrativa. O violão de Campos é muito simples (atenção professores de violão, esta canção é uma ótima pedida para se trabalhar com os alunos!), mas de forma alguma é simplório. Temos uma harmonia modal em Em, composta por um movimento dissonante nos baixos... este violão acaba sugerindo uma atmosfera de suspense, sensação reforçada pela construção da letra... tudo é muito simples, mas muito contundente. 

A forma da canção também traz informação, pois articula o texto de maneira assimétrica, destacando o sentido da última estrofe. Esta configuração formal, este recorte do tempo, sublinha a dimensão do tesão (força tipicamente jovem) e da insegurança frente à um grupo (conflito tipicamente jovem). Os momentos instrumentais da canção valorizam as conexões subjetivas desencadeadas pelo texto.  O trabalho de textura e sonoridade desta canção é fantástico - tb, é o Kiko Dinucci aí! 

Criolo disse que quando acabou de escrever a primeira parte de Duas de Cinco, ele já sabia que gostaria de ter como refrão a canção de Rodrigo Campos. De fato, muitas das características estilísticas que apontei no Rodrigo são aproveitadas por Criolo. Vejamos:


(sample de Califórnia Azul)

É o cão, é o cânhamo, é o desamor/ é o canhão na boca de quem tanto se humilhou/ Inveja é um desgraça, alastra ódio e rancor/ E cocaína é uma igreja Gringa de le chereau// Pra cada rap escrito uma alma que se salva/ O rosto do carvoeiro é o Brasil que mostra a cara/ Muito blá se fala, a língua é uma piranha/ Aqui é só trabalho, sorte é pras crianças// Que vê o professor em desespero na miséria/ Que no meio do caminho da educação havia uma pedra/ e havia uma pedra no meio do caminho/ ele não é preto velho mas no bolso leva um cachimbo /// É o sleazestack dos zóio branco, repara o brilho/ Chewbacca na penha, maizena com pó de vidro/ Comerciais de TV, glamour pra alcoolismo/ É o Kinect do XBox por duas buchas de cinco.

HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar

(sample de Califórnia Azul)

E eu fico aqui pregando a paz e a cada maço de cigarro fumado a morte faz um jaz entre nós, cá pra nós, e se um de nós morrer, pra vocês é uma beleza.// Desigualdade faz tristeza./ Na montanha dos sete abutres alguém enfeita sua mesa./ Um governo que quer acabar com o crack, mas não tem moral para vetar comercial de cerveja. // Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura?/É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura. /Falar pra um favelado que a vida não é dura, e achar que teu doze de condomínio não carrega a mesma culpa. // / É salto alto, MD, Absolut, suco de fruta, mas nem todo mundo é feliz nessa fé absoluta/ Calma, filha, que esse doce não é sal de fruta, / Azedar é a meta, tá bom ou quer mais açúcar?"


Temos a questão do tráfico de drogas como cenário da canção. Imagens da cultura de massa de outras épocas aparecem na letra (sleazestack, e Chewbacca). Vários extratos sociais estão presentes neste texto. É uma verdadeira polifonia de referências, uma fala de alguém que trafega entre mundos com vocabulários diferentes. Alguns ouvintes sabem o que é "duas bucha de cinco", outros sabem quem foi "Hobsbawm". Isso em princípio, pois quem foi que criou este muro invisível? Este muro é real? 

Dizer mais sobre esta letra, que é uma pedrada, é estragar sua fruição. Apenas recomendo, busque as referencias que lhe faltam e tente criar as imagens e reconstruir os "argumentos" deste texto, vale a pena. Aqui tem um link que dá umas primeiras dicas, mas vá mais fundo.

Eu apresentei o texto já articulando as frases com os compassos e a cadência harmônica da canção - desculpem, pra mim ainda é canção. O sample do Rodrigo Campos cantando é manipulado em estúdio e acelerado. O andamento (velocidade) da canção fica um pouco mais rápido enquanto o tom da música vai do Em para o Fm (sobe meio tom). Bem, o trecho do sample possui o mesmo acompanhamento do Rodrigo, só meio tom acima - isso simplificando, pq tem um monte de sons adicionais que orquestram esta nova obra. Este acompanhamento é constituído de um movimento de baixos descendente (láb, sol, fá, mib, ré), desemboca em um zigue-zague cromático (dó#, ré, mib, ré), e por fim chega ao tom (fá). Mas quando a canção inicia a parte rap, entramos em uma estrutura monótona harmonicamente. Um único Fm durante 12 compassos. Nos momentos em que eu separei com /// - " sleazestack"... e "É salto alto..." - acontece uma mudança no acompanhamento. O baixo entra em uma linha próxima da composição de Rodrigo Campos, onde as duas frases do início são aproveitadas (fá#, mi, sol; fá#, mi, fá#), e as duas últimas substituídas por uma repetição da primeira (onde na canção original de Rodrigo faz sol, la, ré) e um encaminhamento para para o fim (originalmente havia "dó#, si, mi", mas agora aparece um frase longa de "sol, fá#, sol, la, ré, dó# si" - meio tom acima).

Isso tudo parece uma confusão, mas se você arriscar tocar, estas coisas que eu escrevi vão clarear a ideia do todo... caso você não toque, perceba somente que o lance da intertextualidade proposta por Criolo é plenamente orquestrada pelo Daniel Ganjaman e pelo Marcelo Cabral. 

É, foi meio até aqui que fui com meus alunos de violão e guitarra. 

Certo, sábado agora tem show do Criolo (e mais Maneva, Haikaiss e Mama Quila) e estamos todos convidados a presenciar este que é hoje um dos artistas mais sabidos da canção brasileira. 

Salve, família!
 






sábado, 2 de novembro de 2013

Russolo, rap e Hendrix: Reflexões e pautas atuais sobre os rumos da canção no Cem Ruídos.

João de Carvalho

Já comentei em um post anterior (O mal estar dos rumos) que uma das fortes tendências da invenção musical dos novos cancionistas diz respeito às experiências com a sonoridade. Naquele momento tentei relativizar – e discordar – um pouco das ideias lançadas por Rômulo Froes.
Apontei que o que Froes talvez estivesse querendo frizar como característica da “nova geração” de cancionistas não era uma experimentação com timbres, como ele descrevia em seu artigo, mas sim uma exploração mais ampla da sonoridade, o que envolvia dizer, principalmente, uma experimentação com texturas – e articulações de texturas – e uma assimilação do ruídos como matéria expressiva.
Resumindo o papo pra quem chegou agora, o artesanato musical praticado com esmero por figuras como Chico Buarque, que envolve a elaboração de sofisticadas linhas melódicas e inauditos caminhos harmônicos (ainda dentro do sistema tonal), vem cada vez mais ganhando menos adeptos dentre os cancionistas mais novos. Em compensação temos compositores altamente sensíveis para os aspectos relativos à sonoridade.
Froes aponta a popularização dos meios de gravação como o estopim para este novo cenário sonoro. Discordei dele neste ponto, e apontei a “Arte do Ruído”, de Luigi Russolo, como um primeiro marco importante para se compreender – e se avançar – a nova situação que vem se instaurando. É claro que a possibilidade de uma manipulação quase tátil do som, como é a que temos ao manejar os programas de gravação e edição de áudio, muda a maneira de se fazer música, porém colocar este advento como o principal ponto da mudança que vem ocorrendo é compreender apenas superficialmente as questões que aí estão envolvidas.
Foi Janete El Haouli – no fundo este texto é também um aquecimento para o festival que ela está organizando... mas já já chegamos aí – quem me lembrou que este ano está completando 100 anos da publicação do texto de Russolo. Este ensaio futurista, que em 1917 aparece em uma compilação de ensaios e batiza o conjunto, foi um marco na história da música. “L'Arte dei Rumore” era o livro de cabeceira de Cage. Quer mais? Este texto é apontado como precursor da música concreta.
Mas Russolo não era um teórico, ele era um artista (pintor, compositor, maestro e inventor), e não se contentando em escrever um texto profético, fez a profecia tomar seu corpo sonoro, por meio de seus “intonarumore” (suas máquinas de fazer ruído). Cabe lembrar que celebridades como Stravinsky, Ravel, Honegger, Claudel e Mondrian assitiram suas apresentações em Londres e Paris no ano de 1914. E o que eles acharam do malucão italiano? Bem, não sei, mas Ravel colocou um coro de rãs ao final de sua obra L'Enfant et les Sortiléges. Coisa de futurista.



Mas o que é este ruído que Russolo diz? Naquela altura a expressão ruído era tida como o oposto ao som convencionado como musical. Seria o “som não-musical”. Russolo reinvindicava para a música a possibilidade de criação e expressão com qualquer som. Todo som é musical. Hoje dizendo assim parece até um moinho de vento – poxa, claro que eu posso fazer com o som o que eu quiser – e isto é a prova mais cabal de que as intuições de Russolo estavam certas.
Certo, certo, mas isso é um blog sobre canção e você nunca ouviu falar desse tal Russolo, será mesmo que ele é importante pra você? Penso que se você quer ir além e compreender quais os “rumos da canção”, ele é importante sim. Tentando de outra forma, a palavra ruído, hoje, já não se refere mais ao mesmo conceito que o dos futuristas. Muita coisa aconteceu – inclusive a popularização dos home studios, como sugeriu Froes – e precisamos compreender suas consequências.
Mais perto do universo da canção podemos citar Hendrix, o músico que primeiro levou a sério essa parada de barulho. Hendrix nos prova que som é som, não nota. As notas musicas são mais um dos parâmetros modeláveis pelas mãos – e pés e bocas e dentes e arcos e tudo o que der na telha – de Jimi.
Vejam, se eu disser que o barato de Hendrix é que ele explora o timbre da guitarra, isso é um problema. Timbre é marca da fonte sonora, ou seja, aquilo que já está mapeado e assimilado em nosso repertório como sendo o som da guitarra. Isso um músico erudito também faz, diga-se de passagem, como um instrumentista erudito – via de regra – não compõe, é justamente isso (estudar o timbre de seu instrumento) que ele faz. Um arranjador mais tradicional também. Quem acompanhou o desdobramento do debate iniciado pelo Rômulo deve se lembrar que muitos contra-argumentos se deviam a este problema conceitual.
Mas se eu disser então que o barato de Hendrix é que ele se utiliza de ruídos, será que resolvo o problema? Bem, eu acho que melhora um pouco, mas ainda não chega lá... afinal, o que é ruído? Considero, assim explico para meus aluninhos da Educação Fundamental, que ruído é uma interferência na mensagem, algo que atrapalha a comunicação. Pensando assim é bem possível que escutemos Hendrix como ruidoso. Mas péra lá, este ruído não é a mensagem?


É, estas questões não são tão retas assim não, percebe? Eu resolvi isto com a palavra sonoridade, que é genérica e também pode conter imprecisões, mas dentro dela eu coloco o trabalho com texturas, timbres e ruídos. Por “trabalho com ruído” eu compreendo uma busca por harmonizar sons que usualmente não são utilizados por serem tidos como “não musicais”. Harmonia, melodia e ritmo não entram na sonoridade? É claro que sim. Mas então, o que difere o trabalho do Metá Metá do do Chico Buarque?
É que o trabalho musical do Metá Metá foca na pesquisa por sonoridades e o Chico em uma pesquisa melódico/harmonica (tonal). Uma pesquisa é mais ampla (e menos profunda em seus elementos específicos), enquanto a outra é profunda, porém controla menos os aspectos mais globais da obra. Parece até, respeitadas as proporções e especificidades, a relação entre a música aleatória e a serial.
Mas Hendrix não foi o único a aproximar a canção popular das profecias do futurista Luigi. Aconteceu o rap no meio do caminho. No rap o DJ – o camarada que toca os discos – manipula fragmentos de músicas pré-existentes, sobrepondo e tranformando o som como matéria tátil – sample. O scratch, pelo qual o DJ mostra seu virtuosismo rítmico, são feixes de “ruído branco” - chiado – que fazem contraponto com a base e com o canto.
E já que falamos do DJ, devemos pensar também um pouco sobre o próprio disco. Antes os chiados ocasionados pelo atrito da agulha no vinil eram tidos como uma espécie de ruído, algo que atrapalhava a mensagem contida nas faixas daquele círculo. Hoje não é exagero dizer que muita gente passou a escutar aquele chiado como algo significativo. Neste caso estamos longe do que Schaeffer (compositor e teórico, pioneiro da Música Concreta) gostaria com sua escuta acusmática, pois o que é valorizado são as relações simbólicas que se estabelecem com aquele timbre. É o timbre do disco servindo como portador de valores como, por exemplo, “pureza analógica” de registro (o que é um equívoco pois poderíamos adicionar o chiado digitalmente, mas beleza, nem sempre o verde nos diz esperança e o vermelho paixão, e seguimos a vida sabendo que eles podem nos dizer isso...). Em outras palavras, violino te leva aos céus – harpa então! -, guitarra te dá atitute e chiados de vinil te colocam em uma máquina do tempo que te transporta diretamente para uma loja de discos, onde você pode encontrar a "verdadeira boa música".
Brincadeiras de lado, vamos voltar ao rap? Só mais um pouquinho. Queria pontuar mais uma ideia que sempre me vem. A melodia é um elemento musical, certo? Ruído é algo que atrapalha a mensagem, em nosso caso, musical. Estaríamos envolvidos em uma expansão do controle do que é musical, e neste caso, aprendendo a utilizar todos os sons possíveis para nos expressar musicalmente. Isso já faz 100 anos, pelo menos. Então, como é que a voz – gente, vale lembrar que estamos falando de canção, e as tensões que envolvem a arte “puramente musical” são diferentes – sacaneou a melodia? Para onde ela expande a compreensão do “musical”? Onde ela transforma a interferência do ruído em reverência à complexidade da vida, este caos incontrolável?
Se você chegou na fala, estamos pensando juntos.
Já faz mais de vinte anos que o Tatit nos diz que toda a canção se origina nas matrizes tensivas da fala, e faz mais de cinquenta anos que João Gilberto chutou o pau da barraca do canto. O rap, por sua vez, como um novo paradigma da canção, explora esta proximidade da fala de maneira primorosa. Quem ainda não aprendeu a escutar a sonoridade das palavras – a melopéia, como Ezra Pound nos diz – como música, está na mesma condição que alguém que não percebe os jogos de tensão e relaxamento do sistema tonal. Isso, novamente, extrapola em muito o limite do rap. Não surge com ele e não se restringe a ele. Só o menciono porque nele a musicalidade da palavra se impõe de uma tal forma que quem só sabe sorver melodia o acha monótono. Mas como encarar, para mudar de exemplo, aqueles textos quilométricos dos cantadores de cordel com suas melodias monótonas? De muitas formas, tanto entrando no ciclo hipnótico de suas estruturas estróficas, como escutando o ricochetear das sílabas dentro da boca do cantor e/ou percebendo como a fala transforma as entoações dadas previamente pela melodia.
Pausa para escuta. Sábado que passou teve show do Siba – tem um texto/vídeo no forno sobre ele, aguardem – e quem não foi perdeu.


Mas João do céu, você começou falando do malucão futurista lá, que que isso tem a ver?
Meu caro, minha cara, deixemos o Russolo e pensemos no Bala.
A “poesia sonora”, conceito criado só na década de 1950, por Henri Chopin, tem seus primeiros experimentos dentre as tradições orais de performances dos futuristas – os russos também participaram dessa história – e, dentre todas as postulações destes artistas e pensadores, podemos dizer que a “poesia sonora” liberta a voz para a livre utilização do ruído.
E eu te pergunto, como não escutar aquele “hahahahahaha HAHAHAHAHAHA HAHAHAHAHAHA” do Criolo e não pensar nisso tudo?



Acontece que temos em nossa cidade – Londrina – a sorte de ter uma figura com a Janete El Haouli. A Janete foi minha professora na graduação. Ela foi pra São Paulo. Mas voltou pra Londrina e, corajosamente – coragem, ela disse uma vez, é agir com o coração – organizou a TOCA. E agora ela resolveu promover, junto com o Zé Mannis, o evento Música e Ecologia Sonora – Cem Ruídos, que ocorrerá entre os dias 12 e 15 deste mês. Este evento contará com pesquisadores do Brasil, França, Equador e Itália, e é uma homenagem ao centenário do texto de Russolo. Ao todo são 15 pesquisadores – artistas – que tem muito a nos dizer. É claro que o foco do debate não é canção, mas como você viu, se queremos ir para além de uma zona mediana de consciência é melhor libertar nossos ouvidos e (pré)conceitos.
Dentre as comunicações e videoconferências – são mais de 15 mesas, fora intervenções e oficinas – teremos um quadro mais ou menos assim: No primeiro dia – uma introdução ao ruído? – a palavra fica com Daniel Teruggi, José Henrique Padovani, Fernando Iazzetta e Lilian Campesato. A Lilian, por exemplo, apresentará a comunicação “Vidro e Martelo: contradições na estetização do ruído”.
No segundo dia o debate se expande e fica ainda mais interdisciplinar (tratará desde o ruído na fotografia às corridas ilegais de carros e motos), e contará com a presença de Enzo Minarelli, Leonardo Fuks, Fernanda Magalhães e Leila Soldberg Jeolás. Dentre as pautas deste dia destaco a comunicação do italiano Enzo Minarelli – que é hoje o grande pesquisador e poeta da poesia sonora – que falará sobre o “Ruidismo russoliano e ruidismo na poesia sonora”.
No terceiro dia teremos a participação de Fabiano Kueva, Silvia Zambrini, Alexandre Fenerich, Rodolfo Caesar e Silvio Demétrio. A linha condutora deste dia estará centrada na investigação das características da escuta. A primeira comunicação do dia ficará a cargo do equatoriano Fábio Kueva, e terá como mote “O ouvido não se educa, se liberta”.
Na sexta ocorrerá os seminários do Rodolfo Caesar e do Mannis. O Rodolfo irá tratar sobre “A espessura da sonoridade e a leveza de seus suportes”, e o Mannis sobre o “Conforto acústico em ambientes hospitalares”. O encontro será encerrado com um passeio pela Mata dos Godoy. Este espaço tão especial que está ameaçado pela construção de um aeroporto em sua zona de amortecimento. (Se você ainda não conhece esta questão tão urgente de nossa cidade, assista ao vídeo do Mioto aqui). Será uma grande experiência – sem macacos, tomara – de escuta, que irá nos aproximar da vivência multisensorial da paisagem sonora.
Todos estes debates e experiências valem por si mesmos. Mas se você ainda estiver pensando em como isso pode ser útil dentro do universo da canção, eu te digo que um dos recursos que vem ganhando espaço dentro das produções de áudio dos novos cancionistas é justamente a utilização de paisagens sonoras. Dentre muitas experiências (poderíamos citar a série Música de Bolso, em que cancionistas são convidados para interpretarem suas obras em espaços públicos, e a paisagem sonora – e visual – do espaço passa a estabelecer um diálogo com a obra) cito um fragmento do texto que eu e o Danilo Lagoeiro (amigo e ex-aluno) analisamos a canção Maria, Minha Maria, de domínio público, na interpretação de Biu Roque com Siba e a Fuloresta, e produção de Beto Villares:

Nos próximos dezesseis compassos, correspondentes aos quarenta segundos finais da faixa, o que escutamos é somente o solo das cigarras sobre a mesma quadratura harmônica que servira de aura ao canto que se concluiu. Não é difícil recriar a atmosfera de contemplação que deve ter tomado o personagem de voz seca após seu áspero desabafo, após seu lamento.” texto inteiro aqui.

Enfim, será uma semana cheia, em que poderemos nos nutrir com informações para alimentar nossas atividades e caminhos particulares. E aí, vamos?