João de Carvalho
Já comentei em um post anterior (O
mal estar dos rumos) que uma das fortes tendências da invenção
musical dos novos cancionistas diz respeito às experiências com a
sonoridade. Naquele momento tentei relativizar – e discordar – um
pouco das ideias lançadas por Rômulo Froes.
Apontei que o que Froes talvez estivesse querendo frizar como
característica da “nova geração” de cancionistas não era uma
experimentação com timbres, como ele descrevia em seu artigo, mas
sim uma exploração mais ampla da sonoridade, o que envolvia dizer,
principalmente, uma experimentação com texturas – e articulações
de texturas – e uma assimilação do ruídos como matéria
expressiva.
Resumindo o papo pra quem chegou agora, o artesanato musical
praticado com esmero por figuras como Chico Buarque, que envolve a
elaboração de sofisticadas linhas melódicas e inauditos caminhos
harmônicos (ainda dentro do sistema tonal), vem cada vez mais
ganhando menos adeptos dentre os cancionistas mais novos. Em
compensação temos compositores altamente sensíveis para os
aspectos relativos à sonoridade.
Froes aponta a popularização dos meios de gravação como o estopim
para este novo cenário sonoro. Discordei dele neste ponto, e
apontei a “Arte do Ruído”, de Luigi Russolo, como um primeiro
marco importante para se compreender – e se avançar – a nova
situação que vem se instaurando. É claro que a possibilidade de
uma manipulação quase tátil do som, como é a que temos ao manejar
os programas de gravação e edição de áudio, muda a maneira de se
fazer música, porém colocar este advento como o principal ponto da
mudança que vem ocorrendo é compreender apenas superficialmente as
questões que aí estão envolvidas.
Foi Janete El Haouli – no fundo este texto é também um
aquecimento para o festival que ela está organizando... mas já já
chegamos aí – quem me lembrou que este ano está completando 100
anos da publicação do texto de Russolo. Este ensaio futurista, que
em 1917 aparece em uma compilação de ensaios e batiza o conjunto,
foi um marco na história da música. “L'Arte dei Rumore” era o
livro de cabeceira de Cage. Quer mais? Este texto é apontado como
precursor da música concreta.
Mas Russolo não era um teórico, ele era um artista (pintor,
compositor, maestro e inventor), e não se contentando em escrever um
texto profético, fez a profecia tomar seu corpo sonoro, por meio de
seus “intonarumore” (suas máquinas de fazer ruído). Cabe
lembrar que celebridades como Stravinsky, Ravel, Honegger, Claudel e
Mondrian assitiram suas apresentações em Londres e Paris no ano de
1914. E o que eles acharam do malucão italiano? Bem, não sei, mas
Ravel colocou um coro de rãs ao final de sua obra L'Enfant et les
Sortiléges. Coisa de futurista.
Mas o que é este ruído que Russolo diz? Naquela altura a expressão
ruído era tida como o oposto ao som convencionado como musical.
Seria o “som não-musical”. Russolo reinvindicava para a música
a possibilidade de criação e expressão com qualquer som. Todo som
é musical. Hoje dizendo assim parece até um moinho de vento –
poxa, claro que eu posso fazer com o som o que eu quiser – e isto é
a prova mais cabal de que as intuições de Russolo estavam certas.
Certo, certo, mas isso é um blog sobre canção e você nunca ouviu
falar desse tal Russolo, será mesmo que ele é importante pra você?
Penso que se você quer ir além e compreender quais os “rumos da
canção”, ele é importante sim. Tentando de outra forma, a
palavra ruído, hoje, já não se refere mais ao mesmo conceito que o
dos futuristas. Muita coisa aconteceu – inclusive a popularização
dos home studios, como sugeriu Froes – e precisamos
compreender suas consequências.
Mais perto do universo da canção podemos citar Hendrix, o músico
que primeiro levou a sério essa parada de barulho. Hendrix nos prova
que som é som, não nota. As notas musicas são mais um dos
parâmetros modeláveis pelas mãos – e pés e bocas e dentes e
arcos e tudo o que der na telha – de Jimi.
Vejam, se eu disser que o barato de Hendrix é que ele explora o
timbre da guitarra, isso é um problema. Timbre é marca da fonte
sonora, ou seja, aquilo que já está mapeado e assimilado em nosso
repertório como sendo o som da guitarra. Isso um músico erudito
também faz, diga-se de passagem, como um instrumentista erudito –
via de regra – não compõe, é justamente isso (estudar o timbre
de seu instrumento) que ele faz. Um arranjador mais tradicional
também. Quem acompanhou o desdobramento do debate iniciado pelo
Rômulo deve se lembrar que muitos contra-argumentos se deviam a este
problema conceitual.
Mas se eu disser então que o barato de Hendrix é que ele se utiliza
de ruídos, será que resolvo o problema? Bem, eu acho que melhora um
pouco, mas ainda não chega lá... afinal, o que é ruído?
Considero, assim explico para meus aluninhos da Educação
Fundamental, que ruído é uma interferência na mensagem, algo que
atrapalha a comunicação. Pensando assim é bem possível que
escutemos Hendrix como ruidoso. Mas péra lá, este ruído não é a
mensagem?
É, estas questões não são tão retas assim não, percebe? Eu
resolvi isto com a palavra sonoridade, que é genérica e também
pode conter imprecisões, mas dentro dela eu coloco o trabalho com
texturas, timbres e ruídos. Por “trabalho com ruído” eu
compreendo uma busca por harmonizar sons que usualmente não são
utilizados por serem tidos como “não musicais”. Harmonia,
melodia e ritmo não entram na sonoridade? É claro que sim. Mas
então, o que difere o trabalho do Metá Metá do do Chico Buarque?
É que o trabalho musical do Metá Metá foca na pesquisa por
sonoridades e o Chico em uma pesquisa melódico/harmonica (tonal).
Uma pesquisa é mais ampla (e menos profunda em seus elementos
específicos), enquanto a outra é profunda, porém controla menos os
aspectos mais globais da obra. Parece até, respeitadas as
proporções e especificidades, a relação entre a música aleatória
e a serial.
Mas Hendrix não foi o único a aproximar a canção popular das
profecias do futurista Luigi. Aconteceu o rap no meio do caminho. No
rap o DJ – o camarada que toca os discos – manipula fragmentos de
músicas pré-existentes, sobrepondo e tranformando o som como
matéria tátil – sample. O scratch, pelo qual o DJ mostra seu
virtuosismo rítmico, são feixes de “ruído branco” - chiado –
que fazem contraponto com a base e com o canto.
E já que falamos do DJ, devemos pensar também um pouco sobre o
próprio disco. Antes os chiados ocasionados pelo atrito da agulha no
vinil eram tidos como uma espécie de ruído, algo que atrapalhava a
mensagem contida nas faixas daquele círculo. Hoje não é exagero
dizer que muita gente passou a escutar aquele chiado como algo
significativo. Neste caso estamos longe do que Schaeffer (compositor e teórico, pioneiro da Música Concreta) gostaria com
sua escuta acusmática, pois o que é valorizado são as relações
simbólicas que se estabelecem com aquele timbre. É o timbre do
disco servindo como portador de valores como, por exemplo, “pureza
analógica” de registro (o que é um equívoco pois poderíamos
adicionar o chiado digitalmente, mas beleza, nem sempre o verde nos
diz esperança e o vermelho paixão, e seguimos a vida sabendo que
eles podem nos dizer isso...). Em outras palavras, violino te leva
aos céus – harpa então! -, guitarra te dá atitute e chiados de
vinil te colocam em uma máquina do tempo que te transporta
diretamente para uma loja de discos, onde você pode encontrar a
"verdadeira boa música".
Brincadeiras de lado, vamos voltar ao rap? Só mais um pouquinho.
Queria pontuar mais uma ideia que sempre me vem. A melodia é um
elemento musical, certo? Ruído é algo que atrapalha a mensagem, em
nosso caso, musical. Estaríamos envolvidos em uma expansão do
controle do que é musical, e neste caso, aprendendo a utilizar todos
os sons possíveis para nos expressar musicalmente. Isso já faz 100
anos, pelo menos. Então, como é que a voz – gente, vale lembrar
que estamos falando de canção, e as tensões que envolvem a arte
“puramente musical” são diferentes – sacaneou a melodia? Para
onde ela expande a compreensão do “musical”? Onde ela transforma
a interferência do ruído em reverência à complexidade da vida,
este caos incontrolável?
Se você chegou na fala, estamos pensando juntos.
Já faz mais de vinte anos que o Tatit nos diz que toda a canção se
origina nas matrizes tensivas da fala, e faz mais de cinquenta anos
que João Gilberto chutou o pau da barraca do canto. O rap, por sua
vez, como um novo paradigma da canção, explora esta proximidade da
fala de maneira primorosa. Quem ainda não aprendeu a escutar a
sonoridade das palavras – a melopéia, como Ezra Pound nos diz –
como música, está na mesma condição que alguém que não percebe
os jogos de tensão e relaxamento do sistema tonal. Isso, novamente,
extrapola em muito o limite do rap. Não surge com ele e não se
restringe a ele. Só o menciono porque nele a musicalidade da palavra
se impõe de uma tal forma que quem só sabe sorver melodia o acha
monótono. Mas como encarar, para mudar de exemplo, aqueles textos
quilométricos dos cantadores de cordel com suas melodias monótonas?
De muitas formas, tanto entrando no ciclo hipnótico de suas
estruturas estróficas, como escutando o ricochetear das sílabas
dentro da boca do cantor e/ou percebendo como a fala transforma as
entoações dadas previamente pela melodia.
Pausa para escuta. Sábado que passou teve show do Siba – tem um
texto/vídeo no forno sobre ele, aguardem – e quem não foi perdeu.
Mas João do céu, você começou falando do malucão futurista lá,
que que isso tem a ver?
Meu caro, minha cara, deixemos o Russolo e pensemos no Bala.
A “poesia sonora”, conceito criado só na década de 1950, por
Henri Chopin, tem seus primeiros experimentos dentre as tradições
orais de performances dos futuristas – os russos também
participaram dessa história – e, dentre todas as postulações
destes artistas e pensadores, podemos dizer que a “poesia sonora”
liberta a voz para a livre utilização do ruído.
E eu te pergunto, como não escutar aquele “hahahahahaha
HAHAHAHAHAHA HAHAHAHAHAHA” do Criolo e não pensar nisso tudo?
Acontece que temos em nossa cidade – Londrina – a sorte de ter
uma figura com a Janete El Haouli. A Janete foi minha professora na
graduação. Ela foi pra São Paulo. Mas voltou pra Londrina e,
corajosamente – coragem, ela disse uma vez, é agir com o coração
– organizou a TOCA. E agora ela resolveu promover, junto com o Zé
Mannis, o evento Música e Ecologia Sonora – Cem Ruídos, que
ocorrerá entre os dias 12 e 15 deste mês. Este evento contará com
pesquisadores do Brasil, França, Equador e Itália, e é uma
homenagem ao centenário do texto de Russolo. Ao todo são 15
pesquisadores – artistas – que tem muito a nos dizer. É claro
que o foco do debate não é canção, mas como você viu, se
queremos ir para além de uma zona mediana de consciência é melhor
libertar nossos ouvidos e (pré)conceitos.
Dentre as comunicações e videoconferências – são mais de 15
mesas, fora intervenções e oficinas – teremos um quadro mais ou
menos assim: No primeiro dia – uma introdução ao ruído? – a
palavra fica com Daniel Teruggi, José Henrique Padovani, Fernando
Iazzetta e Lilian Campesato. A Lilian, por exemplo, apresentará a
comunicação “Vidro e Martelo: contradições na estetização do
ruído”.
No segundo dia o debate se expande e fica ainda mais interdisciplinar
(tratará desde o ruído na fotografia às corridas ilegais de carros
e motos), e contará com a presença de Enzo Minarelli, Leonardo
Fuks, Fernanda Magalhães e Leila Soldberg Jeolás. Dentre as pautas
deste dia destaco a comunicação do italiano Enzo Minarelli – que
é hoje o grande pesquisador e poeta da poesia sonora – que falará
sobre o “Ruidismo russoliano e ruidismo na poesia sonora”.
No terceiro dia teremos a participação de Fabiano Kueva, Silvia
Zambrini, Alexandre Fenerich, Rodolfo Caesar e Silvio Demétrio. A
linha condutora deste dia estará centrada na investigação das
características da escuta. A primeira comunicação do dia ficará a
cargo do equatoriano Fábio Kueva, e terá como mote “O ouvido não
se educa, se liberta”.
Na sexta ocorrerá os seminários do Rodolfo Caesar e do Mannis. O
Rodolfo irá tratar sobre “A espessura da sonoridade e a leveza de
seus suportes”, e o Mannis sobre o “Conforto acústico em
ambientes hospitalares”. O encontro será encerrado com um passeio
pela Mata dos Godoy. Este espaço tão especial que está ameaçado
pela construção de um aeroporto em sua zona de amortecimento. (Se você
ainda não conhece esta questão tão urgente de nossa cidade,
assista ao vídeo do Mioto aqui). Será uma grande experiência –
sem macacos, tomara – de escuta, que irá nos aproximar da vivência
multisensorial da paisagem sonora.
Todos estes debates e experiências valem por si mesmos. Mas se você
ainda estiver pensando em como isso pode ser útil dentro do universo
da canção, eu te digo que um dos recursos que vem ganhando espaço
dentro das produções de áudio dos novos cancionistas é justamente
a utilização de paisagens sonoras. Dentre muitas experiências
(poderíamos citar a série Música de Bolso, em que cancionistas são
convidados para interpretarem suas obras em espaços públicos, e a
paisagem sonora – e visual – do espaço passa a estabelecer um
diálogo com a obra) cito um fragmento do texto que eu e o Danilo
Lagoeiro (amigo e ex-aluno) analisamos a canção Maria, Minha Maria,
de domínio público, na interpretação de Biu Roque com Siba e a
Fuloresta, e produção de Beto Villares:
“Nos próximos
dezesseis compassos, correspondentes aos quarenta segundos finais da
faixa, o que escutamos é somente o solo das cigarras sobre a mesma
quadratura harmônica que servira de aura ao canto que se concluiu.
Não é difícil recriar a atmosfera de contemplação que deve ter
tomado o personagem de voz seca após seu áspero desabafo, após seu
lamento.” texto inteiro aqui.
Enfim, será uma
semana cheia, em que poderemos nos nutrir com informações para
alimentar nossas atividades e caminhos particulares. E aí, vamos?
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