terça-feira, 24 de maio de 2016

Do flow à melodia: Obrigado, Darcy.

João de Carvalho
Darcy Ribeiro dando a letra.

Semana passada, dia 19/05/2016, Fioti lançou o segundo clipe de seu álbum de estréia, o EP Gente Bonita. Ele, que é o irmão que largou o emprego no MC'Donalds e investiu seu acerto de contas na primeira mixtaipe de Emicida, fundando assim a poderosa Laboratório Fantasma, já acenava que chegaria o momento de lançar seu próprio trabalho. Mas não se trata de um disco de RAP e sim de um disco de MPB. 

Seu novo lançamento é a releitura de um RAP de seu irmão em homenagem ao antropólogo Darcy Ribeiro (importante, entre outras coisas, por estudos de revalorização da importância dos índios na formação nacional). A canção original foi lançada em 12 de março de 2014. No trabalho matriz, parceria de Emicida com Rael, os rappers resgatam a memória do importante intelectual brasileiro, ainda pouco conhecido entre o público de rap nacional (déficit decorrente da distância entre o conhecimento acadêmico e as população das periferias). Dá um confere na original clicando aqui.

Mais de dois anos depois e a consciência que este trabalho busca despertar - só pra lembrar, a consciência é o 5º elemento do hip-hop - é ainda mais urgente do que antes. Se tal consciência estivesse ativa nunca teríamos sofrido o golpe que arrancou a presidenta eleita democraticamente com o absurdo argumento de combate à corrupção. Mano Brown disse que viu "a periferia virar as costas pra Dilma", e revelou-se todo fracasso do hip-hop.

Eis que neste novo lançamento temos a voz de Caetano Veloso lendo Darcy Ribeiro assumindo-se, de maneira bela e emocionante, um grande fracassado. 

"Fracassei em tudo o que tentei na vida. 
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. 
Tentei salvar os índios, não consegui. 
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. 
Tentei fazer o Brasil  desenvolver-se autonomamente e fracassei. 
Mas os fracassos são minhas vitórias. 
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"

A leitura de Caetano Veloso, inclusive, me lembra muito apropriadamente as inflexões entoativas de sua canção/RAP, O Herói, em que o compositor tropicalista elegantemente discorda do pai do Chico Buarque (Sérgio Buarque de Holanda) e seu homem cordial, apresentando uma espécie de traficante do morro como sendo o herói que veio para afirmar a democracia racial. 

Assistam ao lindo clipe da nova versão antes de prosseguirmos.



Obrigado, Darcy! (O Brasil que vai além)
Emicida e Rael
Calo nas mãos, bola nos pés
Banzo ou não, diz quem tu és
Arranha-céus ou igarapés
Força de bateria nota 10
Ao olho alheio, trem sem freio, viu
É um coração cheio, um estômago vazio
É a bunda da mulata ou é um moleque de fuzil
Paixões e contradições mil
Sou do Cristo do Rio, riso efêmero
Pô, qual tua cor? Valor? Qual teu gênero?
Se descer sem sambar, eles tremerão
Com roteiro de inspirar James Cameron
Terra de Vera Cruz, luz, berço da vida
Os vilão que é do bem, dos heróis genocidas
Sonho de paz, outros Carnavais
Sou um povo que tem como seu maior bem
Gritar gol

Do Oiapoque ao Chui é isso que eu sou
Mistura de Tupi com sangue de nagô
Recantos de Zumbi batuque de tambor
Brasil é isso aí! em todo canto, por onde for

E o que resta pra nós, forca ou amor?
Força do tambor de pele, de chumbo
Seja como for, livre ou no jumbo
Raiz fica no riso dos pobres da cidade mais rica
Eu vou pintar o rosto e a rua, igual criança 
Pura catar a única esperança
A alegria na fita, o impasse
Batuque na marmita, apatia na face
Vem ver onde o samba nasce

Ladeira, entender o segredo da capoeira
Na luta e na dança, luta a cada round
Nocautes e nocautes nossos
Que a TV não aplaude
Somos reis undergroud, matéria prima
Macunaíma, no peito da América Latina
Hi-tech de terreiro
O sonho de Darcy Ribeiro
Dorme em cada brasileiro


Como o título deste post sugere, minha observação central vai para o processo de releitura ocorrido, onde o elemento musical flow é transformado em melodia. Flow é o principal aspecto da musicalidade de um MC. Flow é a música das palavras. Uma forma mais específica de melopéia. Uma mistura de ritmo, rimas, vocalidade e proto-melodias. MC usa mais os sons da boca, o que enfatiza mais as consoantes, que são os ataques dos sons. Consoantes são pequenos "ruídos" que articulam os timbres das vogais. Um cantor, em contrapartida, dá atenção especial à garganta, que sustentará as vogais entoando melodias (sons de altura definida).

Essa é a principal mudança que Fioti faz na composição de seu mano. A obra de 2014 é mais áspera. Mais ruidosa e ritmada. Mais agressiva. Esta nova versão é mais suave não só por conta da instrumentação, mas sobretudo à transformação do RAP original em uma canção mais doce (apesar da parte falada do final), com uma clara melodia de perfis descendentes que nunca estoura. Nesse processo algumas belezas e forças se perdem e outras se ganham.

O clipe, que é parte integrante desta versão (inclusive a fala do Caetano só tem no clipe) é composto também por uma sequência expressiva de imagens. O trabalho se alinha à proposta da Lab_Fantasma de valorização da cultura afrodescendente. São imagens de negros (e negras) fortes. Corpos bonitos. Mas existe algo diferente entre os exemplos. A imagem de capoeiristas como símbolo de resistência já é comum. A de uma negra com roupa de baiana também. Porém a imagem de uma médica negra é coisa nova.

Lembrando da fala do Brown que eu citei no começo, penso que ainda é preciso frisar que esta imagem, e toda a simbologia que ela traz consigo, só é possível por conta de programas criados na gestão do PT. O governo ilegítimo que tomou de assalto a presidência começou tentando extinguir o Ministério da Cultura (MINC), o que gerou grande mobilização entre os intelectuais e artistas por todo o Brasil.

No dia seguinte ao lançamento do clipe de Fioti, Caetano Veloso fez um show histórico na ocupação do MINC. Com um lindo cocar de penas brancas o compositor cantou, entre outras pérolas de seu repertório, Um Índio.


"E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido óbvio"




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