João de Carvalho
Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode. ... É por isso que somos todos bricoleurs; cada um suas pequenas máquinas. (Deleuze e Guattari)
Rá!, o novo álbum do rapper paulistano Rodrigo Ogi, é com certeza um dos melhores lançamentos deste ano. O disco tem uma sonoridade riquíssima e a caneta de Ogi está mais ágil do que nunca. Suas crônicas são construções cinematográficas, que envolvem sempre muitos personagens em ações de muitos movimentos. Obra esquizofrênica - de muitas vozes na cabeça -, como já é natural na estética de intertextualidades do hip-hop, mas bem mais densa do que o comum. Reflexo de um narrador que luta para "acordar os órgãos de seu corpo", contrariando o simples uso do corpo que o capitalismo nos impõe (Deleuze e Guattari, em "O Anti-édipo - Capitalismo e Esquizofrenia"), um "corpo/máquina sem órgãos", com a função desejo atrofiada... A primeira faixa é uma "rádio/narrativa" em que o rapper chega ao consultório para uma seção de terapia.
Na faixa seguinte, o primeiro rap do álbum, Ogi apresenta seu narrador - que se mistura, mas também se dissolve, na figura do próprio rapper - como um "Aventureiro", em versos como "pois eu sou louco e ligeiro, louco e ligeiro, aventureiro/ e assim a selva cinza eu vou conquistar". Na faixa seguinte o narrador começa a relatar o que vê em seu caminho de desbravador das dores da cidade, em "Estação da Luz". Essa faixa relato de caminhante lembra-me muito duas canções, o "Brejo da Cruz", do Chico Buarque, e "Metrô linha 743", de Raul Seixas. As proximidades do plano formal se dão no trabalho da rima em em "uz" - em relação à obra do Chico - e de uma estrofe que se finda com a localização título - em relação à obra do Raul. Mas existem proximidades de conteúdo, e nesse sentido, de "vozes da rua" que são registradas nas 3 canções.
Eu já havia, no post passado, chamado a atenção para o clipe de "Trindade, parte 2", um ótimo clipe que se utiliza da técnica de animação, ainda pouco explorada dentro do universo do hip-hop. Pois bem, a chamada de atenção vem novamente para este álbum agora por conta de outro clipe surpreendente. Me refiro ao lançamento de "Hahaha", clipe da canção correspondente à quarta faixa do disco Rá!.
O clipe é simples e ao mesmo tempo criativo. Simula um relato recheado de "aventuras amorosas", contadas para outros homens (Mc's de grande relevo dentro do hip-hop nacional). Ou seja, o rapper se aventurou em um território minado, dificílimo de se equilibrar sem cair em machismos. E, diferente do público de rap de antigamente, a sonoridade e as parcerias que compõe o álbum e aparecem no clipe (Criolo, Emicida, Black Alien...) formam um produto que aponta para um público composto em muito por mulheres, cada vez mais emancipadas e vigilantes. Não é à toa que na sequência filmada com o Emicida ambos aparecem caracterizados como sambistas dentro de um jardim - "Trepadeira", a canção que colocou o Emicida numa baita saia justa, se estrutura somente com nomes de plantas.
Mas o desfecho da história, o cuidado em "se garantir" no lado literário de seu texto, as imagens de contraponto das mulheres rindo da cara do convencimento do narrador, e o sonho, redimem Ogi. Até a performance do Criolo parece meio sem graça, cheia de um constrangimento de quem escuta e percebe o devaneio e o enrosco que o narrador vai se envolvendo. Na realidade todos os participantes do clipe escutam o relato já cheios dessa espécie de constrangimento.
Logo nas primeiras escutas desse som me veio uma outra canção à mente. Mais uma vez me parece curioso uma escuta em paralelo, agora com a canção da freira Jeanine Deckers. O paralelo inusitado é por conta da canção mais famosa da freira cantora, Dominique. Porém a canção de teor religioso, que brinca de maneira "primaveril" com o a sonoridade "nique nique" - primeiro mote sonoro do texto de Ogi - foi convertida de maneira "profana" para o português. A gravação da freira desbancou até mesmo os The Beatles em 1963, e no ano seguinte foi lançada em português na voz de Giane.
Na versão em português, apesar da ingenuidade do sonho da personagem, que projeta um enredo romântico para seu amor - me chama a atenção a livre apropriação da obra, que se torna ousada ao pensarmos no contexto da original religiosa. O fato é que esse é só o estopim do compositor paulista, que vai dichavando rimas em "ique" na primeira sequência de versos. Depois ainda aparece uma citação ao Simonal - "mamãe passou açúcar em mim" - que mantém o tom de bom humor da narrativa.
Bem, apesar desse respiro pelo lado de Eros, nesse Amor/Humor engraçadíssimo, o disco não se distancia da violência e dos discursos "politizados" do hip-hop, que se embebem de Tanatos. Percebo, para finalizar a reflexão, como alguns instintos de "Amor e Morte" andam se equilibrando em mais de um grande lançamento deste ano. O disco do Chico César - que saiu pela LabFantasma - é outro que me chama a atenção nesse sentido.
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