Por João de Carvalho
I - introdução
O Rodrigo Garcia Lopes está
lançando seu segundo disco: Canções do Estúdio Realidade (C.E.R.). Ele, que
também é poeta, tradutor e editor da revista Coyote, toma emprestado diretamente
de um dos ícones da contracultura norte-americana, William Burroughs, a
expressão "estúdio realidade". O lançamento deste álbum marca um período de colheita
para o autor, que lançará ainda este ano
um livro de poemas (Estúdio Realidade, pela 7Letras, do Rio) e em 2014 um romance policial (O Trovador), além de
shows com o repertório do disco e vídeo-clipes (os primeiros, que já estam em fase
de produção, são das canções New York e Quaderna, dirigidos por Anderson Craveiro).
Viabilizado pelo Programa
Municipal de Incentivo à Cultura (PROMIC Londrina), o projeto contou com a
presença marcante do multi-instrumentista
André Siqueira, que, munido de um time composto por 13 músicos locais,
traduziu, ou melhor, transcriou várias potencialidades harmônicas, rítmicas e
texturais já presentes no violão de Rodrigo.Mas, como a própria apresentação do disco (feita por Arrigo Barnabé) já prenuncia, ao falarmos de coisas técnicas ¨logo vamos nos perdendo¨. Em outras palavras, C.E.R. é um trabalho tão rico em sonoridades, poesia e modos de dizer (como já foi apontado pelo certeiro Luiz Tatit) que, se começarmos a elencá-las vamos desfiando um novelo sem fim. Então, se você estiver querendo escutar um disco com arranjos instrumentais finos e de bom gosto, estruturas de canção pouco comuns, ricos encadeamentos fônicos, belas e sugestivas imagens (isto mesmo, escutar imagens) e contemplar a dança que as palavras realizam no intelecto, este álbum é um prato cheio!
Só que não pára por aqui não. O
CD é um livreto belíssimo, com fotos e citações inspiradoras. E aí podemos
apreciar o brilhante trabalho do Marcos Losnak (parceiro Coyote), Beto e de Elisabete
Ghisleni (fotos). Cada faixa do disco vem acompanhada, num delicado contraponto, com uma
fotografia. E ainda tem mais. Tudo isso pode ser conferido de maneira
interativa e gratuita no endereço eletrônico www.revistazunai.com/rgarcialopes/cancoes/
. Ali você pode conferir inclusive um comentário faixa a faixa com o próprio
autor. Bem, se você ainda não escutou, vai lá e invista uns 50 minutos do seu
tempo. Depois volta aqui...
II – dois desvios
Não sei você, mas eu fiquei cheio
de dúvidas com este disco. Acho que elas começam em “quem é o Rodrigo?”,
caminham por “o que é Londrina?” e chegam até um “para que canções?”.
--- desvio nº1 ---
Acho que devo começar assim:
Eu, João de Carvalho, nasci em
1984, nunca sai do Brasil, nem o conheço muito bem, não falo inglês... no ano
em que eu nasci o Rodrigo estava morando em Londres, como trabalhador ilegal, e
comprou algumas cerejas em uma banca de frutas para matar sua fome. Uns vinte
anos depois estou eu em Londrina buscando saber o que havia de literatura e
poesia na cidade, foi quando trombei com o nome Rodrigo Garcia Lopes, e "Cerejas"
foi um dos primeiro poemas que li. Lembro de ter ficado um bom tempo relendo
aquelas palavras sem encontrar um sentido claro e, por fim, pensar sobre o que
levava alguém a escrever aquilo. Mas naquela época eu ainda não sabia que o
Bashô recomendava “do orvalho / nunca esqueça / o branco gosto solitário” (via
Leminski)... Hoje, ao escutar a sexta faixa do C.E.R., e perceber a
musicalidade daquelas palavras encadeada em um ritmo de blues, penso que
canções são mesmo bolas grudentas lançadas ao tempo.
Elas tem a capacidade de aderir significados com o passar dos anos e dos eventos...
ficam girando em torno da gente...
e interessante é notar como elas, ao se dividirem,
entre vários individuos,
multiplicam a sua massa.
Penso tb no papel do tradutor... no fundo todo artista é um tradutor...
alguém que viaja e nos brinda com aromas de outros cantos. traduzir é isso
fazer pontes
talvez...
---canções são mesmo bolas grudentas lançadas ao tempo.
Elas tem a capacidade de aderir significados com o passar dos anos e dos eventos...
ficam girando em torno da gente...
e interessante é notar como elas, ao se dividirem,
entre vários individuos,
multiplicam a sua massa.
Penso tb no papel do tradutor... no fundo todo artista é um tradutor...
alguém que viaja e nos brinda com aromas de outros cantos. traduzir é isso
fazer pontes
talvez...
Eu sempre digo aos alunos que cancionista esperto não compõe
canção.
Cancionista esperto compõe repertório;seja um encadeamento específico de show ou um específico de disco.
: O grande lance está em fazer as canções conversarem entre
si.
A escuta do álbum C.E.R. começa com a apreciação da capa.
Existe um personagem e um violão por entre uma névoa verde provocada pelo desfoque de alguma vegetação.
Este sujeito espreita,
e está à ponto de assaltar uma ilha de edição do nosso estúdio realidade.
--- desvio nº2 ---
C.E.R. é um disco embebido de Londrina.
“... um arraial cercado por uma densa massa de floresta que se
estendia no horizonte escarlate. No verão, a umidade que escapava da mata
sufocava os habitantes. Quem adentrava o maciço sombrio de altas árvores
voltava encharcado de um suor pegajoso. Ingleses, alemães, russos,
dinamarqueses sofriam com o clima da “selva do Três Bocas”, onde campeavam
moléstias silvestres. Nos fins de tarde
era possível ver os funcionários estrangeiros da Companhia de Terras lastimando
a mata.” (Maurício Arruda Mendonça).
O cosmopolitismo apontado por Leminski (1985) em Rodrigo ainda permanece, e o
principal diálogo musical que o autor faz é justamente com o jazz e seus
derivados. Mas isso tem a cara de Londrina – ou de uma parte dela. A influência
da arte japonesa, sua economia de meios e sua visualidade, também é marcante na
lírica que permeia o álbum. E, novamente, mais um traço desta terra que tem uma
das colonias japonesas mais significativas do país.
Kinoarte
Haruo Ohara ; seu olhar descende da poesia mínima.
Booker Pittman
Jazz e entretenimento na terra do café
Satori Uso
persona síntese beat pé-vermelhoLondrina,
a mais rápida das bandas de cá
---
Voltando, enfim, ao disco...
eu vim parar
aqui por causa da vegetação... qualquer lugar onde se firme a vista tem a cor verde...
Londrina parece que brota do meio do mato. Isto tudo está no disco...
Não de Londrina,
p#$$%!
Sim,
mas o olhar
e os ouvidos que registrou essas viajens
foi feito em meio a estes pinheirais.
mas o olhar
e os ouvidos que registrou essas viajens
foi feito em meio a estes pinheirais.
III – algumas percepções faixa a faixa:
O disco abre com Quaderna.
Quatro compassos quaternários. Porém, existe um deslocamento rítmico na idéia
inicial que transforma a repetição em cama para a diferença. É o que ocorre também com as estrofes que, sendo compostas em quadras, com excessão da última, sabotam a redondilha
maior, proposta pelo primeiro verso, com uso de metros irregulares. Os temas elencados em cada um
dos versos também sacaneiam a estruturação lógica, pois quase nunca apresentam uma
situação de correspondência obrigatória com o número quatro... (por ex., compassos podem ser quaternários, ou binários, ou ternários...) ... mas tudo isso prepara a ideia central: a escolha, e a
composição de um próprio enredo para a
vida.
A segunda faixa, Ninguém Melhor
Que Ela, é uma versão da canção tema do 007 de 1977. Pode não parecer, mas ela é mais do que uma
simples canção de amor. Temos aqui um jogo
de espionagem entre o desejo e o amor. É bem bonito o espelhamento entre as
estrofes, na primeira ela guarda os segredos dele, na segunda ele guarda os
truques dela... o arranjo, muito delicado e bonito, tem ares de "foto
BP" e "espionagem"... um baita climão! ... quem arranhar um violãozim pode arriscar tocá-la com acordes
simples, também fica bonita e a aproxima de uma pegada mais "brega brasileiro", meio tremendão ou Odair José, muito
propício para este tipo de Gaia-Ciência (isso é sério, não estou tirando onda...). Ps.: o foto é linda, mas dá pra rir
quando lembramos que se trata de uma "maria sem-vergonha"... bem, afinal, são leituras!
Alba é a canção praieira do disco. O mar sempre nos ensinando sobre a real dimensão das coisas. Essa percepção é fundamental para nos colocar no nosso devido lugar. O
jogo final da letra, “vida breve / curto o dia”, nos faz lembrar ainda que começamos essa
viagem sob o signo de Quaderna; da responsabilidade sobre traçar o próprio
enredo de nossa única vida.
O primeiro quarteirão do disco se encerra com Vertigem (Um
Corpo que Cai). Aqui temos a canção mais cinematográfica do disco. A melodia das
estrofes é composta partindo de motivos em zigue-zague sobre uma harmonia dissonante. Esta melodia, associada ao desenrolar gradativo da letra e do arranjo,
cria um clima de tensão e contensão que se rompe na palavra “vertigem”,
acentuando o conteúdo passional do refrão, que parece cair... uma associação com o perfil melódico desendente. *na última vez que o refrão é apresentado aparece uma segunda voz, do próprio Rodrigo, que canta uma melodia em movimento contrário... isso parece, da maneira como é feito, agravar a sensação de desencontro e angústia dos personagens.
Fugaz. A palavra "vertigem" volta para a cena. O estranhamento da viagem. Toda a beleza é fugaz... Que foto mais linda! Nossa! Dá para ficar procurando formas aí... . O texto é apresentado de forma declamada para, somente na re-exposição, entregar a melodia. A arte querendo eternizar o instante...
Sobre Cerejas eu já disse um pouco. Esse poema interrogação ficou uma delícia de cantarolar com essa melodia... a parte B apresenta a leitura dos negritos originais. E poder escutar o Casagrande com seu vibrafone é sempre uma grande oportunidade.
Álibis começa com o verso "Pela trilha sem folhas". Pra quem não conhece, "trilha forrada de folhas / sem saber o leste e o oeste / japonês que chega aqui"... Nenpuku Sato, via Maurício Arruda Mendonça. ... O primeiro verso revela uma estação do ano (ou da vida). Depois vem o desterro, "água bebida num trem" (Fugaz). E esse verão passeando de novo pelo disco.
Assim como o que ocorre em Fugaz, em que a canção ajusta uns versos do poema original, Rito faz algumas alterações no poema original. A mais evidente é a supressão da palavra "cobranças", porém uma escuta mais atenta revela que existe um outro plano de pontuações no canto... a frase central não soa como uma pergunta... existe uma interrogação após o "lembra" do primeiro verso da última estrofe ... e a interrogação final vira uma espécie de ponto (ou três pontos). Pra mim essa é uma das canções mais bonitas do disco. Acho linda a primeira sequência de rimas em "isso", é um som meio soturno... uma canção triste, sem dúvida. Aquela alteração que eu mencionei, da dúvida que vira afirmação (precisa de centro!) acho uma transformação linda... a melodia gira em torno de uma nota, um centro... gosto ainda mais porque a letra registrada no encarte traz a interrogação. É nítido o contraste desta canção com as que vieram antes... aqui já não acontecem explosões por simples fagulhas. E a foto fecha um afeto fantástico!
Fechamos o segundo quarteirão. Adeus abre as portas das parcerias. Aqui, um poema do Paulo Leminski. Rodrigo foi muito feliz em sua versão para esse poema de despedida. Essa canção com levada funk ressalta uma espécie de humor em meio à amargura do que é dito. Lembram daquela história da canção bola grudenta ao tempo? Essa foi feita na década de 1990. Nessa época o poema "Rito" ainda não existia. Nessa época o Rodrigo ainda podia abraçar seu pai e sua mãe... Provavelmente essa canção já está enorme; deve ter grudado tantos significados nestes quase vinte anos de existência... Uma canção de desprendimento. Pra dançar!
Iluminações é uma canção exemplar. Parceria com o Bernardo Pellegrini. Tem um certo clima de "clube da esquina" (perdoe-me fazer comparações, coisa de redator chinfrim, mas acho que isso colabora com o clima e situações em questão). Casa de madeira ... quem foi que disse! ... o chão cede, ora! ... (pra mim, inclusive, é a "casa de mata-junta", da rua da Carioca - pra quem boiou, ver Londrinenses, no último conto). Essa canção capta os elementos certos de uma atmosfera de república em meio à sonhos e esperanças. É lindo cantar isso nesse momento do disco. Lembrar dos sonhos... reanimá-los através do canto.
Butterfly. É, compor em inglês é assim, mano! Classe essa canção. Uma pequena pérola capturada pela Neuza Pinheiro em forma de melodia. Essa canção é tão delicada quanto a bela borboleta descrita. Cada verso com um som especial... melopéia, fanopéia, logopéia... tá tudo aí. Uma explosão quase muda.
New York. A última faixa do disco, um "tipo um rap", pra lembrar a formulação do Chico Buarque sobre as canções de seu último disco, funkeado. O arranjo feito pela banda "Cinemática", partindo do violão original de Rodrigo, reforça as intenções expressivas do canto falado do autor. O que mais distancia essa canção de um rap tradicional não é de forma alguma o arranjo, ou mesmo a tendência mais lírica do que épica ou dramática. O que de fato faz com que pensemos que aqui não se trata de um rap é a falta de engajamento comunitário. É o não pertencimento desse sujeito que canta ao ambiente descrito. Ainda é uma canção de passagem, de estranhamento.
IV - pequena ressalva.
me causa um certo desconforto pensar que "a cara de Londrina" seja mesmo este cosmopolitismo de pioneiros. essa é a "cara de uma certa Londrina", central, estudada... cultura, penso, é mais do que isso... Família IML (que acabou), rap nacional de responsa, pé-vermelho... um amigo me contou como os caras ficaram felizes de tocar no centro da cidade - na Vila Brasil... (a molecada da periferia tem os sons nos celulares e sabem as letras... e pensem, tocar no centro da cidade DELES causa alegria)... e tem mais coisa que acontece por aqui que não tem essa face cosmopolita... gostaria mesmo que as pessoas que ainda não conhecem o trabalho do Rodrigo pudessem trafegar nas pontes de percepção que ele vem traçando ao longo dessa caminhada poética.
o contrário também seria legal; que quem já trafega por essas pontes possa perceber outras realidades.
/
João. O texto tá bem aquilo que a gente vem discutindo ao longo deste ano. gostei da sua marca biopessoal no texto (me identifico muito com esta estratégia) além da postura não-passar- a-mão-na-cabeça que geralmente a crítica de arte no brasil tem por norma.
ResponderExcluirparabéns e siga sempre esta senda que por ser arriscada e penosa ainda é a única que nos mantém vivos com o fogo nos estremecendo por dentro.