Luana
Gomyde
Colaboração:
João Vitor Nakao
Escutar
“Benedita” é mergulhar na densidade da história de uma
transexual por meio dos vários aspectos musicais interligados e
muito bem pontuados. A canção foi composta por Celso Sim e Pepê
Mata Machado para a intérprete Elza Soares e faz parte do álbum “A
Mulher do Fim do Mundo”, lançado em 2015 pela cantora. O clima da
música e, consequentemente, da história de Benedita é estabelecido
pelo arranjo que conta com guitarras distorcidas e metais.
Logo
no início, conhecemos Benedito e sua força de vida: “esse nêgo
que quebra o quebranto”, “filho certo de tudo que é santo”.
Também, percebemos os obstáculos que precisa enfrentar: “Benedito
é fera
ferida”,
“traz na carne uma bala perdida”. Nessa parte da letra, guitarra
e bateria alternam riffs
melódicos e ostinatos
percussivos, confirmando a persistência de Benedito. Aos poucos, as
células repetitivas parecem querer desmanchar, porém nunca
completamente.
Então,
uma pausa brevíssima. Agora a música soa mais fluida, possui mais
gingado e os metais surgem com melodias que parecem flutuar sobre a
cama criada pelos demais instrumentos. Somos apresentados à
Benedita: malemolente e malandra, mas corajosa e guerreira – “ela
leva o cartucho na teta”, “ela abre a navalha na boca”. A
partir da apresentação completa de Benedito/Benedita, o arranjo se
densifica, como se caminhasse para seu clímax. A letra nos revela a
violência da polícia, uma milícia, e tensiona o momento do ataque:
ela se prepara. Nesse ponto, é feito um trocadilho interessante com
as palavras crack
e craque,
pois Benedita é craque – lutadora, viva, vencedora – e convive
com o crack – drogas, destruição, miséria.
Em
um terceiro segmento, pode-se notar mais uma mudança de clima, dessa
vez proposta pela melodia das vozes. Todas as dualidades de
Benedito/Benedita são expostas: é homicida, suicida, aparecida,
bendita, maldita, senhora – apavora! Os adjetivos empregados fazem,
também, alusão à Nossa Senhora Aparecida, ícone religioso
tipicamente brasileiro.
Nesse
momento, outra intertextualidade marcante na canção é ressaltada:
Benedita molda-se à imagem e semelhança de Geni, prostituta
protagonista da música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque.
Benedita e Geni sofrem o mesmo descaso, estão à margem da
sociedade, sempre julgadas e sem direito de resposta. Ainda, ambas
representam a dualidade mais básica do homem em um mundo regido pelo
jogo de interesses, o ser mau ou bom: “maldita
Geni”, “bendita
Geni”. A referência à personagem, presente na música toda e em
seu contexto simbólico, fica estancada no verso “crack agora, não
demora, joga
a pedra,
nessa hora”, que remete imediatamente ao bordão “joga pedra na
Geni” da canção de Chico Buarque.
Finalmente,
comprovando mais uma vez sua resistência, ela “vem armada, não
rendida, faz do beco sacristia”. Um instante caótico se instaura
na música e, quando imaginamos ser o fim da canção, uma última
surpresa: a volta do início, que adquire um novo significado por
conhecermos a história de Benedita agora. Ainda, outro aspecto
importante para a construção da música é a contraposição e a
transmutação das vozes de Elza Soares e Celso Sim.
De
forma sintetizada, “Benedita” é uma excelente opção para
tratarmos das questões de gênero, cada vez mais presentes em nossa
sociedade. Cruamente e sem lirismos, pode-se refletir sobre os
obstáculos enfrentados pelas pessoas que decidem assumir essa
transformação em suas vidas. Importantes valores como liberdade,
respeito e diversidade emanam da composição, acrescidos, ainda, das
temáticas da violência, da miséria e das desigualdades sociais e
econômicas.
***
“Benedita”
faz parte do conjunto de onze faixas inéditas que compõem o álbum
“A Mulher do Fim do Mundo” de forma instigante e inspiradora. O
CD é um passeio pelos círculos do inferno de hoje e conta com as
concepções de diversos músicos extremamente ativos no cenário
musical paulistano atual: Guilherme Kastrup, Celso Sim, Romulo Froés,
Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Thiago França, Marcelo Cabral e os
músicos da banda Bexiga 70 – Cuca Ferreira, Daniel Gralha, Daniel
Nogueira e Douglas Antunes. O resultado apresentado no álbum é
fruto da idealização de criações artísticas, desses músicos,
destinadas a Elza Soares e sua irreverência.
Em
convergência com as considerações de Kiko Dinucci em seu texto
“Caminhos da polifonia contemporânea”, vale salientar que, assim
como a “polifonia cacofônica de São Paulo”, o álbum “A
Mulher do Fim do Mundo” resgata os sons das ruas – a paisagem
sonora dos grandes centros urbanos – de uma forma esteticamente
enérgica e permite encontrar a beleza que floresce dos aparentes
defeitos.
“Coração
do Mar”, de José Miguel Wisnik, com letra de Oswald de Andrade, é
à capela: nas sombras, a voz de Elza Soares ilumina o início dessa
jornada náutica. Em sequência, “Mulher do Fim do Mundo”, de
Romulo Fróes e Alice Coutinho, traz a cantora como narradora do
apocalipse: a desintegração ocorre durante o carnaval – a pele
preta, a voz e o resto espatifados na avenida. Elza resiste, pede que
a deixem “cantar até o fim”, e as notas longas da melodia
traduzem perfeitamente o cansaço e a persistência.
“Maria
da Vila Matilde”, de Douglas Germano, trata da violência
doméstica: “cadê meu celular, eu vou ligar pro 180”, “cê vai
se arrepender de levantar a mão pra mim”. Distorções sonoras se
misturam à melodia e samba, rock e rap se integram. Também, em "Luz
Vermelha", de Kiko Dinucci e Clima, rap e punk rock são
sobrepostos e o apocalipse é recortado em cenas de periferia,
tiroteio e ruas esvaziadas. A favela torna-se o cenário do fim do
mundo e do Brasil e, ao mesmo tempo, o lugar de onde pode ser
reconstruído. A reação perante a destruição é a chance de um
renascer das cinzas.
A
canção “Pra Fuder”, de Kiko Dinucci, é um samba rápido em que
o tesão é cantado sem frescura e alardeado pelo naipe de metais. Em
“Firmeza?!”, Rodrigo Campos cria mantras a partir de gírias
talvez pertencentes aos arredores de seu cotidiano. Angústia e
fraternidade pincelam a música, gravada em duo com o autor.
O
tango “Dança”, de Cacá Machado e Romulo Fróes, se situa depois
do fim: a narradora está morta; quase pó, insiste em dançar. Elza
não desiste. O oriente chega por meio da sonoridade e da letra de “O
Canal”, de Rodrigo Campos, e seu arranjo segue no ritmo da
caminhada feita em busca de algo, do renascer.
Em
“Solto”, de Marcelo Cabral e Clima, como o título e as notas
soltas indicam, a travessia é solitária, sem nada mais. Não há
guitarras ou distorções, as quais voltam no início de “Comigo”,
de Romulo Fróes e Alberto Tassinari. O crescendo ruidoso estanca de
repente e Elza ressurge à capela, em tom de oração, de lamento
sertanejo: “levo minha mãe comigo, pois deu-me seu próprio ser”.
Então, um longo silêncio do fim de tudo. Porém, sua voz permanece
ao fundo... Elza insiste!
***
Como
falar de “A Mulher do Fim do Mundo” e não pensar na trajetória
de vida de Elza Soares? Mulher, negra, nascida em uma comunidade
pobre do Rio de Janeiro: Elza é a representação da minoria. Para
além de sua voz rouca única, a cantora é conhecida por quebrar
paradigmas, pois sabe o que é discriminação. Elza Soares tornou-se
um ícone para o Brasil.
Sua
voz misturou muito jazz
e samba desde seus 13 anos e rendeu gravações com grandes nomes da
música brasileira, como Roberto Ribeiro, Wilson das Neves e Milton
Nascimento. Segundo Ronaldo Bôscoli, é a “bossa negra”. Na
década de 80, estreou no cenário pop: sempre contemporânea, feliz
e coerente na escolha de repertórios. Elza passeia tranquila em
qualquer território com seu timbre especial e o balanço que faz sua
voz soar como um instrumento. Uma artista que vive seu tempo e não
envelhece. Uma mulher que sacode a poeira, levanta e dá a volta por
cima.
Referências
VIANNA,
Luiz Fernando. Elza Soares renasce das cinzas com seu já histórico
novo disco. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/10/1689464-elza-soares-renasce-das-cinzas-com-seu-ja-historico-novo-disco.shtml>.
Acesso em: 23 fev. 2016.
PALUMBO,
Patrícia. Elza Soares é foda! Disponível em:
<http://elzasoares.com.br/elzasoares/biografia/>. Acesso em: 23
fev. 2016.
Elza
do Brasil. Disponível em:
<http://elzasoares.com.br/elzasoares/post-2/>. Acesso em: 23
fev. 2016.
Informações
sobre o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”. Disponível em:
<http://www.amulherdofimdomundo.com/>. Acesso em: 28 fev. 2016.
DINUCCI,
Kiko. Caminhos da polifonia contemporânea. Disponível em:
<http://outroscriticos.com/caminhos-da-polifonia-contemporanea/>.
Acesso em: 25 ago. 2016.